
Durante a ditadura, Dallari atendia sindicalistas e demais perseguidos
políticos. Um dia, foi levado até a cela onde estavam
esses colegas, que se empolgaram com sua presença. “Nosso
advogado chegou!”, comemoraram. “Pois é, mas nesse dia,
era eu quem estava chegando preso”, lembra.

Entre 1986 e 1990, Dallari foi diretor da FD e fechou o departamento
feminino, alvo de protestos de alunas que julgavam a existência
da sala uma segregação. Quase 40 anos antes, o
mesmo Dallari apoiou as colegas da turma que solicitaram um espaço
reservado, pois eram a minoria.
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Nascido em 31 de dezembro
de 1931, Dalmo de Abreu Dallari é considerado
hoje um dos maiores juristas brasileiros. Professor
e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, autor
de Elementos da Teoria Geral do Estado,
ativista da histórica Comissão Pontifícia
de Justiça e Paz na década de 70, membro
da Comissão Internacional de Juristas e ex-membro
da Cátedra Unesco/USP pelos Direitos Humanos.
Entre outros títulos nacionais e internacionais,
o professor Dallari demonstra que a participação
social e política não depende do status
acadêmico. Qualquer um pode dar sua contribuição
participando de questões locais e cotidianas.
Quer ver outro cargo do professor? Vice-presidente
da Associação dos Moradores do Bairro
Vila Nova Conceição. Quem não
pode atuar no próprio bairro?
Dallari cresceu em Serra Negra, interior de São
Paulo, junto com os pais e quatro irmãos. A
família se mudou para a capital paulistana apenas
em 1947, com o objetivo dos filhos estudarem. Só os
filhos, a filha não. “Era um problema da mentalidade
da época”, lembra.
O pai, descendente de italianos, tinha uma sapataria.
Era seu costume ler o jornal e explicar as notícias
para a antiga clientela, composta principalmente por
imigrantes que trabalhavam na roça. “Nessa época,
eu ainda era um toquinho, mas ficava ouvindo as conversas”,
conta Dallari. “Eu fixei, por exemplo, que meu pai
falava contra Getúlio, e que meu tio morreu
na luta de 32.” Essas informações motivaram
Dallari, aos oito anos, a corrigir a professora do
ginásio onde estudava, em Serra Negra. Quando
ela mencionou para a classe o presidente Vargas, ele
interrompeu: “Presidente não, professora. Ditador!”.
Em São Paulo, os irmãos completaram
o chamado curso clássico, equivalente ao ensino
médio. “Quando deixei Serra Negra, já queria
estudar direito. O ambiente familiar me influenciou,
claro. Além da liderança política
que vi em meu pai, minha mãe era uma leitora
assídua. Ela admirava, inclusive, a tradição
da faculdade do Largo São Francisco e seus poetas:
Castro Alves e Álvares de Azevedo.”
O ingresso de Dallari na Faculdade de Direito (FD)
da USP aconteceu em 1953. Com a graduação
em 1957 e os constantes aperfeiçoamentos na
carreira, chegou à livre-docência em 1964.
Publicou 14 livros, associando o direito e a prática
social. Entre as publicações, está Elementos
da Teoria Geral do Estado, obra consultada por
dez a cada dez estudantes de direito. “E eu escrevi
esse livro porque percebi que faltava algo
desse assunto mais próximo da realidade. Antes,
era tudo muito abstrato.”
O exercício da advocacia acompanhou o professor
por muitos anos. Foi solicitador da OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) no quarto ano da graduação.
A convite do jurista Alfredo Gallo Júnior, seu
antigo professor de português, foi trabalhar
em um escritório na Praça da Sé. “Tive
contato com audiências, juízes e acumulei
um bom conhecimento. Meu estilo de advogar veio do
Gallo Júnior, um mestre para mim.”
A ligação de Dallari com o operariado
surgiu quando o estudante trabalhava no escritório
de advocacia no Centro de São Paulo e assistiu,
ao vivo, à pancadaria em cima dos trabalhadores
durante reuniões grevistas na Praça da
Sé e Praça João Mendes. “Era revoltante
ver a polícia a cavalo batendo nos operários.
Nunca fui comunista nem tive simpatia porque sou cristão.
E como cristão, preciso ser solidário.”
A defesa dos direitos humanos, englobando o movimento
do operariado, foi marca de sua carreira. Na FD, essa
postura chamou a atenção do conservador
meio acadêmico, que chegou a excluir o professor
de muitas aulas.
Sabendo dessa disposição que Dallari
manifestava ao longo dos anos, D. Paulo Evaristo Arns
o procurou em 1972. O governo militar estava no auge
das intervenções violentas, prisões
arbitrárias e sumiços instantâneos
de opositores e suspeitos. O cardeal havia decidido
montar uma Comissão Pontifícia de Justiça
e Paz em São Paulo, seguindo exemplo do Rio
de Janeiro, e convidou o professor para presidir a
organização. “Nessa altura, eu já era
bastante procurado como advogado para ajudar pessoas
que tiveram parentes e amigos presos. Depois que me
tornei presidente da comissão, esse trabalho
ficou mais fácil, porque eu ia à polícia
e avisava o delegado: ‘se esta pessoa seqüestrada
não aparecer, ou aparecer morta, o Papa vai
ficar sabendo ainda hoje'! Claro que era blefe, mas
podia ser verdade. Se a comissão tem o título
de Pontifícia, é um comitê do Papa.” |

“Nunca fui comunista nem tive simpatia porque sou cristão. E como cristão,
preciso ser solidário.”
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Durante os anos seguintes, a atuação
de Dallari foi motivo de perseguição política
e duros golpes. Na noite anterior à visita do
papa João Paulo II a São Paulo, em 1980,
o professor foi vítima de seqüestro e espancamento. “Fiquei
todo arrebentado, um bando de sujeitos me agrediu num
terreno baldio até eu não conseguir ficar
em pé mais. Era para servir de recado”, lembra.
Voltando para casa, foi levado ao hospital, onde exigiu
dos médicos que conseguisse ir ao evento do dia
seguinte. “Eu estava escalado para fazer umas leituras
na missa do Papa. Eu iria àquela missa nem que
fosse a última coisa da minha vida.” E, para espanto
dos presentes na cerimônia, ele realmente apareceu,
sob os aplausos da população. Àquela
altura, a ditadura já não tinha mais muito
fôlego.
Apesar de o professor ter tido participação
ativa nas várias questões de sua época,
principalmente na luta pelos direitos humanos, nunca
pensou em engrenar na vida política. Na máquina
pública, de 1990 a 1992, foi secretário
de Negócios Jurídicos da Prefeitura durante
a gestão de Luíza Erundina. “Por convite
de uns amigos, fui candidato a vereador quando eu estava
na graduação. Candidatura foi só essa
vez, mas eu faço política o tempo todo,
uma política não partidária. Utilizo
o direito como instrumento de mudança social.” |