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Eu estava brincando na rua, correndo, empinando pipa, quando ele me chamou. Disse: “Menino, senta aí no muro”. Depois, ajeitou o meu cabelo. Pediu para que colocasse as mãos sobre o joelho. Eu fiquei ali quieto. Sem me mexer. Num instantinho, ele pegou o lápis e me desenhou rapidinho. Aí ele disse: “Agora pode sair”. Estava com tanta pressa de brincar que nem pedi para ver o meu retrato...

Foram esses cinco, dez minutos de paciência que garantiram a Arduíno Heitor Morando – hoje com 66 anos, dois filhos e três netos – fama internacional. Ele foi um dos moleques da cidade que Portinari pintou na série especial Meninos de Brodowski. Arduíno jamais poderia imaginar que teria o orgulho de ser retratado pelo maior pintor brasileiro. “Todos os meninos já morreram. Só eu fiquei para contar a história.”

E o menino de Brodowski conta a história com todos os detalhes. “Eu estava sentado exatamente aqui”, diz, apontando o muro da casa de Portinari. “Gostava de brincar com o filho dele, o João Candido. Meu amigo até hoje. A gente ficava por ali e, de vez em quando, ele nos chamava para lavar os pincéis. Quem diria que o homem fosse ficar tão famoso. E mesmo famoso continuou do mesmo jeito. Sério, compenetrado, de pouca conversa. Sempre pintando.”

Os meninos da cidade gostavam dele. “No final do ano, ele juntava a molecada na frente da casa e distribuía notas novinhas que dava para a gente comprar um monte de doces. Era uma fila que não terminava. Naquele tempo, ele já era considerado um artista dos bons. Dava dinheiro para as crianças e também para os velhos.”

Arduíno nunca saiu de Brodowski. Viaja de vez em quando para Praia Grande com a família, mas não vê a hora de voltar. É essa saudade que faz de Brodowski – uma cidade como tantas do interior paulista – um lugar diferente. A nostalgia de Arduino é exatamente a mesma que Candinho sentia quando tinha 15 anos e foi estudar no Rio de Janeiro. Escreveu: “Quanto mais próxima a partida, mais aflito ficava. Olhava o chão, as plantas, os animais, as aves e aquela luz... Parecia que nunca mais iria ver tudo aquilo, que era parte de mim mesmo. Quantas lágrimas derramei às escondidas. Vi e revi mil vezes todos os recantos. Saudade incontida do que ficava. Procurava ensaiar para não ser traído pela emoção. Ia à casa de minha vó... Voltava para casa, falava com a minha mãe. Preferia não ir, mas necessitava ir, estava na idade. O sol, a lua, as estrelas, as águas do rio, o vento, tudo ficaria lá e eu encontraria o escuro”.

Mesmo quando conquistou do governo brasileiro, com o Retrato de Olegário Mariano, a tão sonhada viagem de estudos para a Europa, Portinari ficou com o coração apertado. Embarcou no dia 30 de junho de 1929, no navio Bagé, para a França e, nas suas cartas para a família, desabafou: “Palaninho só tem um dente, usa calças brancas de saco de farinha de trigo, cheias de remendos escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo da marca da farinha... Palaninho é beira-córrego e dono de um sítio... Eu uso sapatos de verniz, calça larga, colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como Palaninho e não compreendo Wilde. Tenho medo da polícia, ando com os papéis sempre em dia e tenho medo de gente que tem emprego vitalício. Tenho saudades de Brodowski – pequenininha, duzentas casas brancas de um andar só, no alto de um morro espiando para todos os lugares, com a igreja sem estilo, uma torre no centro e duas pequenas ao lado, com o altar que eu fiz”.

“Vou pintar a minha terra” – Casas com alpendres, a maioria térrea e muitas delas bonitas. Ruas largas e planejadas pelo engenheiro polonês Alexandre Brodowski. “Houve um movimento para mudar o nome da cidade para Candido Portinari”, conta o prefeito Antonio José Fabbri. “Mas Candinho protestou. Não quis de jeito nenhum.”

Brodowski tem 20 mil habitantes e 90 anos de emancipação política. A economia é movimentada pela agricultura, pequenas e médias empresas, prestação de serviços e construção civil. Lá, ninguém precisa ligar o carro. As pessoas circulam de bicicleta. “As primeiras da cidade foram trazidas da Europa por Portinari”, lembra Arduíno. “Tinha uma porção na sua casa, que ficava à disposição das pessoas que o visitavam. Mas eram os meninos da rua que mais utilizavam. Nós e o João Candido pedalando nas ruas de terra vermelha.”

Hoje, Brodowski não é mais o povoado que Portinari descrevia. O trenzinho que ligava Campinas a Franca e inspirou tantos quadros e poemas já não existe mais. A estação Visconde de Parnaíba, com tijolos à vista e telhas vindas de Marseille, na França, está abandonada. Não há nem a sombra dos trilhos. “Quando Portinari voltou de Paris, a cidade quis dar uma festa para homenageá-lo e foi esperá-lo com banda e tudo na estação de Brodowski”, diz Lucia Bueno de Almeida, secretária da Cultura. “Mas ele era avesso às homenagens. Desceu na Visconde de Parnaíba e entrou na sua casa pelos fundos. O pessoal ficou magoado. Achou que ele tinha voltado orgulhoso. Só que Portinari queria mesmo era ficar tranqüilo para pintar. Meu pai, o jornalista Almeida Pinto, era muito seu amigo e eu tinha oito anos quando ele me levou para conhecê-lo. Lembro da minha admiração por estar diante de um artista e um artista que era igual à gente do povo.”

Mas as casas que foram se encostando umas nas outras não apagaram as lembranças pintadas por Candinho. “A paisagem onde a gente brincou a primeira vez não sai mais da gente, e eu, quando voltar, vou ver se consigo fazer a minha terra”, prometeu. Basta andar pela cidade para sentir as imagens de Portinari saindo das telas. O coreto azul e branco, onde a banda de seu Batista, pai de Candinho, tocava, ainda está ali, altivo, no meio da praça central. Também o circo de vez em quando aparece para alegrar a garotada. E os bailes continuam tanto na roça como no Clube da Velha Guarda, no centro da cidade, onde não falta a nostalgia da sanfona e da viola. A pensão Martini, fundada em 1915, também está de pé, só que agora se transformou no único hotel da cidade. Pequeno e aconchegante, todo pintado de rosa.

Também tem os meninos que espalham a sua alegria pelas ruas jogando bola, empinando pipa, rodando pião. Há as meninas tão bonitas, sentadas no alpendre; os coqueiros solitários, as procissões. A fazenda Santa Rosa, onde nasceu, continua ativa. A casa sede, branca e azul, ainda existe e os trabalhadores se dividem entre o gado e os cafezais. E, pela cidade, ainda paira a mesma vontade de Portinari de ganhar o mundo, mas sem sair de Brodowski. “A diferença desta cidade é que todos nasceram por aqui. Vão, mas sempre voltam”, diz Giácomo de Martino, 63 anos, agricultor. “O pessoal sai para estudar, mas volta. Vai procurar emprego, trabalhar em outro lugar, mas volta. É que aqui a terra tem cheiro de terra e a gente se sente dono dela. De vez em quando se ouve falar em assaltos à mão armada, mas quando acontece é um escândalo. Nosso povo ainda dorme com a porta aberta, põe as cadeiras do lado de fora para conversar.”

Giácomo é um dos aposentados que se reúnem nas mesas em frente da estação de trem desativada, para jogar cartas. Passam de segunda a segunda assim. Sem brigar com o tempo. Quem se achega é sempre bem-vindo. Pode tomar um gole de café da garrafa térmica, ficar à vontade. Como tantos outros, Giácomo nunca saiu nem pensa em sair da cidade. “Se eu for, vou sofrer. Então, pra quê? Tenho certeza de que, se Portinari não tivesse ido embora para o Rio, para o estrangeiro, estaria vivo. Teria cem anos cheios de saúde. Ele não era de muita conversa. Mas gostaria de estar entre a gente. E a gente ensinaria o artista a viver sem pressa, jogando buraco. Aí ele pintaria essa Brodowski de hoje, que, na verdade, continua a mesma.”

O dia-a-dia de Candinho – A casa de Candinho, planejada por ele mesmo com muito carinho e ampliada aos poucos com o dinheiro que começou a ganhar com a venda dos quadros, está como sempre. Foi tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 9 de dezembro de 1968 e transformada em museu no dia 8 de abril de 1970.
Andando pelos quartos, transformados em salas para a exposição dos objetos, é possível perceber o capricho de quem zelou por Portinari: a mãe, dona Dominga, que cuidava da cozinha e de enfeitar a casa com as toalhas com rosinhas crochetadas uma a uma com linha número oito ou dez, bem fininha, e Maria, sua esposa, empenhada em preservar o seu cotidiano de artista.

Tanto capricho acomodava não só o espírito irrequieto do artista como o de seus amigos. Manuel Bandeira, Antonio Bento, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade eram recebidos com hospitalidade. Portinari tinha ciúmes de seus amigos, especialmente de Mário de Andrade. O próprio Enrico Bianco, em entrevista ao Jornal da USP, em dezembro de 2000, contou: “Certa vez, nós dois estávamos pintando e o Mário apareceu para conversar. O Portinari ficou sabendo de seus artigos elogiosos à obra de Segall e começou a dizer que não achava que ele merecia tudo aquilo. Ficou falando, falando... Aí, o Mário interrompeu dizendo: ‘Pára com esse ciúme. Eu gosto do seu trabalho e do trabalho dele também. Sou seu amigo e dele também’. Aí, ele respirou fundo e se aquietou”.

Apesar do ciúme, Portinari acompanhava e respeitava o trabalho dos seus contemporâneos. E gostava de oferecer as paredes da casa para a arte dos amigos. Daí o seu ateliê exibir também os afrescos de Juanita Blank e Paulo Rossi Osir.

Hoje, os visitantes de Portinari continuam sendo recebidos com muita hospitalidade. Há 20 anos, a diretora Angélica Policeno Fabbri cuida de preservar a casa como o artista a deixou. E o mais importante: cuida para divulgar a sua arte e a sua história. “Temos desenvolvido vários projetos para os diversos tipos de público que se utilizam do museu, desde os alunos da escola da região e de todo o Estado até estudantes, especialistas, artistas e turistas do mundo inteiro.”

Brodowski conserva os objetos, as paisagens e o cotidiano do maior pintor brasileiro. Acima, Arduíno Morando, hoje com 66 anos, um dos meninos retratados por Portinari

Angélica tem uma equipe dedicada de monitores: Cristiane Patrici, Fabiana Cristiana Valsiche e Amélia Franzoni. Todas brodowskianas que pesquisam a obra de Portinari com carinho e cuidado. Graças a esse trabalho, é possível recompor o dia-a-dia de Portinari. No quarto: a cama patente, o guarda-roupa com as roupas, os sapatos, as malas. Há também a coleção de cachimbos. No ateliê, a luz do céu entra por uma clarabóia. Dá vida aos pincéis, aos tubos de tinta. Até parece que o artista vai entrar devagarinho e começar a pintar na tela em branco que permanece sobre o cavalete. Por todos os cantos, é possível sentir o pintor, o poeta. Um artista que teve a delicadeza de mandar construir uma capela no fundo do quintal só para a sua avó, dona Pelegrina, rezar. Decorou as paredes com afrescos de Santa Isabel, Nossa Senhora, São João Batista e a Sagrada Família com os rostos de sua esposa Maria, sua irmã Olga e o irmão Lói. Detalhes que compõem uma vida dedicada à família, a Brodowski e à arte brasileira.

 

 




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