a
fachada da Casa da Xilogravura
Uma
casa branca em estilo alemão com alpendre, chaminé,
telhado vermelho em duas águas, toda cercada por pinheiros,
araucárias e a alegria das bromélias e hortênsias.
No horizonte, as colinas de Campos do Jordão em todas as
nuances de verde. Bem de manhã, o fog envolve a paisagem,
mas logo vem o sol de verão e a luz vai sendo filtrada pelas
cortinas, imprimindo pelo ambiente várias gravuras efêmeras.
É nesse cotidiano poético que a Casa da Xilogravura,
um museu fundado e coordenado por Antonio Fernando Costella, um
dos professores precursores da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP, acolhe os visitantes. Logo na entrada
entre pilares imponentes o público é recepcionado
por um toco de ipê, para lembrar que sem árvore
não há xilogravura. Nem vida. Essa tora resgatada
por Costella em 1980, em uma serraria da cidade, é de uma
árvore nascida por volta de 1660. Cada anel corresponde
a um ano de sua vida, conta o professor. Aqui, este
trecho é 1969, quando o homem pisou na Lua. Este anel marca
1822, quando D. Pedro I proclamou a Independência. Veja esta
linha. Registra 1792, quando Tiradentes foi enforcado, e este anel
data de 1698, quando o bandeirante de Taubaté, Antonio Dias,
passando por esta Serra da Mantiqueira, foi descobrir Ouro Preto,
em Minas Gerais.
Essa lição é só o início de um
percurso curioso. Além de conhecer a importância da
árvore registrando o tempo, a vida e a arte, há a
apresentação de todo o material usado na xilogravura.
Facas, formões, goivas, buris e também como é
preparada uma matriz. Pelas paredes estão expostas as madeiras
mais utilizadas: peroba, guatambu e pêra, entre outras. E
o mais curioso: Costella, sua esposa e diretora técnica Leda
Campestrin e a assistente Márcia de Faria, que também
são artistas, ensinam, na prática, como nasce uma
xilogravura. Ela é feita pela impressão sobre
o papel ou algum outro suporte desta matriz entalhada em madeira,
explica o professor enquanto ajeita a prensa. Por sua aparente
simplicidade, é a mais espontânea das técnicas
gráficas. Da simplicidade, porém, permite nascer uma
formidável riqueza em arte, dotada de encantos sem fim.
Um vídeo de oito minutos mostra cada etapa da impressão.
O movimento na Casa da Xilogravura cresce a cada dia. Mesmo nestes
últimos meses em que a freqüência dos turistas
em Campos do Jordão é menor, sempre aparecem pessoas
interessadas. São cerca de 800 visitantes por mês.
Nós estamos no Guia Quatro Rodas, na categoria de duas
estrelas, orgulha-se Costella. O mesmo número
de estrelas atribuído ao Palácio do Governo de Campos
do Jordão.
seus espaços acolhedores e seu precioso acervo:
A simplicidade da xilogravura permite uma formidável
riqueza em arte, dotada
de encantos sem fim
Constelação
Com disciplina, determinação e sensibilidade, a Casa
da Xilogravura tem um trabalho inusitado na divulgação
dessa arte que nasceu no Oriente há mais de um milênio
e meio. Os chineses a empregavam para imprimir orações
budistas e os japoneses a utilizaram no ano 770 para estampar talismãs.
Foi através da xilografia que os chineses produziram os primeiros
livros impressos pelo homem. Para ilustrar essa história,
Costella apresenta, logo na primeira sala, a reprodução
da gravura mais antiga que encontrou: Buda pregando no Jardim
de Jetavana da Sutra Diamante, impressa por Wang Chieh no
ano 868, na China.
Essa e outras preciosidades fazem parte do acervo de 2 mil obras,
que começou a ser formado há quase três décadas.
A Casa da Xilogravura foi aberta no dia 17 de julho de 1987. Ocupa
22 salas de uma casa construída em 1928 para abrigar o Mosteiro
de São João, de irmãs beneditinas. Hoje a coleção
é apresentada em um conceito que permite conhecer a história
e o percurso da xilogravura no Brasil e no mundo.
Diante dessa proposta cuidadosa de divulgar a arte da xilogravura
que, no Brasil, reúne grandes mestres como Oswaldo
Goeldi, Lasar Segall, Lívio Abramo, Marcello Grassmann, Maria
Bonomi e Renina Katz entre tantos outros , a Casa da Xilogravura
merece muito mais que duas estrelas. É exatamente essa constelação
impressa por Costella e sua pequena equipe de cinco colaboradores
que virá, no futuro, para as mãos da USP. Quero
deixar esse patrimônio para a USP na expectativa de que o
acervo possa continuar a ser apreciado pelo público e também
seja uma referência para os artistas, pesquisadores, estudantes
e a população em geral, ele diz.
Para que a Universidade tenha a tutela do museu, o professor impôs
duas condições. A primeira é que continue funcionando
dentro de suas metas na divulgação da xilogravura
e a segunda é que o túmulo do cachorro Chiquinho,
fiel companheiro do professor e sua esposa, permaneça no
jardim do imóvel.
Chiquinho, além de ser fonte de inspiração
de gravuras, é o protagonista de uma coleção
de livros escrita por Costella. Ele tem uma importância
muito grande na minha vida, mudou muito a minha maneira de pensar
as coisas e me levou a ter uma visão mais ecológica
do mundo, de respeito aos animais e à natureza.
Muitas
histórias
A história de Chiquinho é uma das muitas que as crianças
gostam de ouvir e estão impressas na Casa da Xilogravura.
Elas gostam de observar o seu túmulo e depois ver a sua figura
gravada pelo professor. Também se divertem com a história
de Severino, um repentista representado por um boneco criado por
Leda. Através desse personagem, nós lembramos
os cantadores do Nordeste brasileiro e a arte da xilogravura nos
modestos folhetos de cordel, explica a artista. Era
um recurso barato e eficiente para ilustrar as capas desses pequenos
livros, que estimularam a formação dos xilógrafos
populares.
Severino está ali em pé com a viola na mão,
todo elegante de óculos escuros. Junto dele, exemplares da
literatura de cordel e, na sala próxima, uma exposição
de gravuras que mostra que a xilo tem uma importância singular
na representação e documentação do cotidiano
brasileiro. Ao fundo, um cenário com a casa do nordestino.
Lá estão a rede de dormir, o passarinho na gaiola,
a moringa, o jerimum. Digo para a garotada que o Severino
costuma repousar neste lugar. É um jeito de estimular o folclore
e a imaginação, diz Leda.
Há ainda uma sala para contar a história da xilogravura
utilitária. Ou seja, para estampar tecidos, multiplicar imagens
sacras, produzir cartas de baralho, imprimir e ilustrar livros,
jornais e revistas. Em outro espaço, destaca-se a trajetória
da xilogravura brasileira, com os pioneiros Lasar Segall e Oswaldo
Goeldi, que conseguiram liberar a xilo dessa destinação
utilitária. Com as inovações técnicas
do final do século 19, a xilografia passou a ser praticada
pelos artistas como forma de expressão para criar obras autônomas,
a serem observadas como quadros.
Para mostrar a beleza e autonomia da xilogravura brasileira, há
obras de Lívio Abramo, Renina Katz, Marcelo Grassmann, Maria
Bonomi, Aldemir Martins e Antonio Henrique Amaral, entre outros.
Infelizmente, não há espaço para mais
do que uma gravura de cada artista, justifica Costella. Procuramos,
no entanto, reunir estilos e temas diversos, entre eles os indígenas.
Embora não haja comprovação documental de datas
ou locais, é razoável acreditar que os índios
tenham sido os primeiros xilógrafos. Segundo relatos
antigos de viajantes, várias tribos empregavam matrizes de
madeira para imprimir, com tinta, desenhos rituais na pele e também
para estampar peças de indumentária.
Outro destaque do museu é a coleção internacional
que reúne gravadores conhecidos e anônimos. Uma das
obras que mais chamam a atenção dos visitantes, pelas
cores e pela técnica de papéis sobrepostos, é
a de um desconhecido da Tailândia. Ela traz uma guerra de
elefantes. Há também gravuras dos japoneses Utagawa
Kunisada e Hiroshige Rissai, dos chineses Huan Tchao Tchan e Huan
Yon Hon, do italiano Baittiner Bosco Ficca, do espanhol Antonio
Eslava, do argentino Alberto Elicetche, enfim, uma seleção
que deixa entrever como cada país desenvolveu a técnica
da xilogravura.
A Casa da Xilogravura está localizada na avenida Eduardo
Moreira da Cruz 295, no bairro do Jaguaribe, em Campos do Jordão.
Abre de quinta a segunda-feira, das 9 às 12 horas e das 14
às 17 horas. Entrada: R$ 1,00 (grátis para menores
de 12 anos e maiores de 65 anos). Informações pelo
telefone (012) 3662-1832.
Entre
versos e xilos
Jogo
no rio o anzol.
O céu arde em fim de tarde.
Tento pescar o sol.
Manhã
de novembro de 1982. Quando entrou no Museu de Arte de São
Paulo (Masp) com o seu primeiro álbum de poemas e xilogravuras,
Xilopoema, Antonio Costella se sentiu exatamente assim: tentando
pescar o sol. Mas, como um bom pescador, ficou tranqüilo.
Firme na convicção de mostrar o seu trabalho
para o exigente Pietro Maria Bardi. Pensou que não
iria passar da recepção. Mas, poucos minutos
depois, estava diante do célebre diretor do Masp. Calado,
ele foi examinando as xilogravuras com paisagens e poemas.
Observou tudo com atenção. De repente, chamou
o seu assistente e ordenou: Dê um espaço
na pinacoteca para esse artista lançar esse álbum
e expor suas obras.
Costella ficou perplexo. Em segundos, montou a exposição
na mente. Jamais havia imaginado e sonhado ver suas xilogravuras
no mesmo espaço de Portinari, Renoir, Matisse, Tintoretto,
Van Gogh. Uma exposição com a apresentação
feita por Bardi, que sequer perguntou há quanto tempo
ele estava se dedicando à xilogravura. No fundo, no
fundo, esse italiano de Laspezia, amante singular das artes,
percebeu que Costella era um iniciante tinha começado
o aprendizado da técnica havia apenas um ano
e também percebeu que aquele artista era capaz de pescar
o sol.
E pescou. O incentivo de Pietro Maria Bardi fez com que esse
paulistano, advogado formado pela Faculdade de Direito da
USP e professor da Escola de Comunicações e
Artes (ECA), transformasse a xilogravura em um projeto de
vida. Além de se dedicar à arte, Costella começou
a montar o acervo com obras de artistas nacionais e internacionais.
Cinco anos depois, inaugurou a Casa da Xilogravura em Campos
do Jordão. Bardi foi meu grande incentivador.
Hoje, a minha prioridade é divulgar a xilogravura e
estimular a formação de novos artistas. Temos
organizado cursos e palestras, afirma. E, no futuro,
queremos que esta casa vá para as mãos da USP.
Para tanto, queremos construir um novo prédio, abrir
espaço para uma coleção maior. Enfim,
é um sonho para ser compartilhado com estudantes, pesquisadores
e artistas.
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Um
raro calendário medieval
A
Casa da Xilogravura apresenta, até o final de fevereiro,
a exposição Calendário dos Pastores,
que vem despertando a atenção dos visitantes
tanto pela beleza quanto pela raridade. São 12 xilogravuras
reproduzidas de um almanaque francês de 1497, doadas
ao museu pelo colecionador Joseph Luyten, professor da Escola
de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Mostram,
por meio dos signos do zodíaco, as atividades do homem
medieval, como a poda das videiras (áries), a colheita
das flores (touro), o passeio a cavalo (gêmeos), a tosquia
dos carneiros (câncer), o tempo da ceifa (leão),
a colheita (virgem), a vindima (balança), a semeadura
(escorpião), o sacrifício do porco (sagitário),
a panificação (capricórnio), a refeição
(aquário) e o aquecimento da casa (peixes).
O Calendário dos Pastores é uma edição
que reúne informações variadas, provérbios,
orações, explicações sobre os
santos de cada dia, fases da Lua e curiosidades astronômicas.
As 12 xilogravuras têm como meta traçar a estrada
do céu percorrida pelo Sol durante os 12 meses
do ano. Estão expostas a partir do signo de Carneiro
(21 de março a 20 de abril) porque, quando as gravuras
originais foram impressas, o ano começava para os europeus
em 1o de abril. Somente a partir de 1582, por força
da reforma do calendário determinada pelo papa Gregório
XIII, o início do ano passou a ser celebrado
em 1o de janeiro.
Rei
de Itapuã
Outra mostra temporária em destaque é a série
Artista da Vez, que a partir desta semana homenageia
o baiano José Júlio Geiger Calasans Neto, mais
conhecido como Calasans Neto. Através de fotos, gravuras
e ferramentas, a trajetória de mestre Calá,
rei de Itapuã, apelido que recebeu de Jorge Amado,
é contada em breves depoimentos.
O artista lembra o tempo em que cursava o ginásio e
teve contato com Genaro de Carvalho, que estava pintando um
mural no Hotel da Bahia, em Salvador. Puxei conversa,
mostrei trabalhos, ganhei um convite para utilizar o seu ateliê.
Foi esse o meu primeiro contato com o mundo profissional da
arte. Com Genaro não tive nenhum curso. Fui orientado.
Era um convívio e aí chegou a gravura em minha
vida.
Depois, conta ter feito um curso livre com Mário Cravo,
na sala de gravura da Escola de Belas Artes. Só
vê-lo trabalhar já era uma aula. Nessa
época, com seu colega de primário Glauber Rocha,
além de Fernando da Rocha Peres e Paulo Gil Soares,
participou de um movimento intenso de renovação
da arte na Bahia. A primeira exposição de Calasans,
Gravuras e monotipias, foi em Porto Alegre, em
1956. Desde então, participou de mais de 200 mostras
no Brasil e no exterior. Com gravuras fortes e expressivas,
ilustrou uma centena de livros e produziu vários álbuns.
Tem se dedicado, ainda, à cenografia para teatro e
cinema. Seus cenários valorizaram filmes como Deus
e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de
Rui Guerra. Embora tenha se dedicado à pintura, escultura
e outras técnicas de gravura, é na multiplicação
com matrizes de madeira que Calasans marca seu itinerário
artístico.
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