
A
expectativa de vida do brasileiro é cada vez maior, mas o
que adianta viver 80, 100 ou mais anos se a cabeça já
não funciona direito e o idoso, em vez de viver, vegeta?
A questão preocupa a medicina em geral e os pesquisadores
da Faculdade de Medicina da USP em particular. O professor Paulo
Saldiva, chefe do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina,
diz que as pessoas têm que se preparar para viver bem e as
escolas médicas precisam dar maior atenção
à geriatria e aplicar maiores recursos em áreas estratégicas,
como a prevenção de doenças degenerativas.
E é isso que a faculdade está fazendo. Toca o projeto
Envelhecimento Cerebral, com suporte de um banco de cérebros,
e começa a dar corpo a outra linha de pesquisa visando a
determinar as raízes, possivelmente genéticas, da
violência. Sem contar que o departamento que Saldiva dirige
investiga há anos doenças derivadas da poluição
urbana.

Generosidade
A medicina sabe como o coração, os rins e outros órgãos
humanos envelhecem, porque as formas de avaliar o seu estado são
bem objetivas eletrocardiograma, ultra-som e biópsias,
entre outras tecnologias. Mas a função cerebral é
mais complexa. Daí surgiu a idéia de destacar um tema
muito ligado ao envelhecimento cerebral, que são as alterações
de humor, a depressão e as demências, no sentido de
que as pessoas, geralmente depois dos 50 anos, começam a
esquecer nomes, datas e coisas do dia-a-dia e a perder a conexão
com o mundo. Para descobrir o que ocorre no cérebro afetado,
que proteínas estão se acumulando, que funções
são perdidas em diferentes níveis, é preciso
compará-lo com o cérebro de indivíduos que
têm a mesma idade, as mesmas características sociais,
étnicas e profissionais, mas não apresentaram a doença.
Mediante exame de casos e de controles será possível
saber o que distingue o envelhecimento saudável daquele que,
embora ganhe em expectativa de vida, perde em qualidade.
Segundo Saldiva, sinais de demência são muito raros
em indivíduos abaixo de 50 anos, mas se acentuam exponencialmente
com a idade, até que acima dos 80 anos a taxa de demência
chega a 40% da população. É isso que o banco
de tecido cerebral da Faculdade de Medicina pretende estudar. E
estudar de forma generosa, colocando o banco de cérebros
à disposição de pesquisadores de vários
departamentos, de outros Estados e até do exterior, sem se
preocupar com a remuneração do trabalho, sem reter
conhecimentos derivados do projeto; antes, interessados em formar
pessoal especializado e colocar a Universidade na vanguarda da neurociência
e a serviço da comunidade, preparando-a para uma vida longa
e saudável. O exemplo, observa Saldiva, vem da própria
população brasileira, generosa por índole e
disposta a colaborar com a ciência, cedendo de boa vontade
órgãos de parentes para a pesquisa.

Paulo Saldiva: 17 grupos de pesquisa vão
investigar quase mil cérebros em busca de respostas para
os males do envelhecimento
O banco de cérebros da Faculdade de Medicina, uma iniciativa
dos departamentos de Patologia e
de Neurologia e da disciplina de Geriatria, começou modestamente,
propondo-se estudar a história natural da doença de
Alzheimer em diferentes estágios. Existem no mundo muitos
cérebros guardados de pessoas com a doença, mas a
maioria desses bancos apresenta sério inconveniente: são
órgãos de pacientes que à hora da morte já
apresentavam a doença em estágio avançado,
tornando a freqüência de casos de controle insuficiente.
A doação nesses casos vem de pessoas cadastradas voluntariamente
em vida, e a taxa média de coleta anual no exterior é
de 50 a 120 cérebros. O projeto brasileiro queria estudar
as alterações cerebrais desde a primeira manifestação
da doença de Alzheimer e para isso precisava de grande número
de órgãos, inclusive de pessoas sadias para comparação
com os cérebros doentes.
Mas qual seria a reação das famílias na hora
difícil de esperar a liberação do corpo do
parente no serviço de biópsia? Topariam preencher
um questionário longo e ainda enfrentariam uma entrevista
para informar o que o doador era capaz de fazer sozinho, de que
se lembrava ou não, que nível de dependência
do ponto de vista de atividades neurais ou cerebrais apresentava?
Pois, foi uma agradável surpresa. A colaboração
foi excelente e em apenas um ano de projeto piloto o banco está
próximo dos mil cérebros necessários. Segundo
Saldiva, 90% dos familiares dos doadores concordam com a cessão
do órgão e com a entrevista; e se não estiverem
em condições de preencher o questionário na
hora, voltam uma semana depois, e o retorno se dá em 75%
dos casos. A generosidade pode ser em parte creditada ao fato de
ser muito penoso cuidar de um paciente com a doença de Alzheimer,
que freqüentemente nem reconhece mais os familiares mais próximos.
Nessas condições, ninguém deseja o mesmo aos
outros e todos torcem para que se encontre cura para o mal.
É verdade que o Departamento de Patologia já possui
estrutura favorável à montagem do banco de cérebros,
pois é no mesmo prédio que funciona o Serviço
de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC).
O setor concentra todas as autópsias de mortes naturais por
causa mal definida da cidade de São Paulo. Anualmente são
realizadas cerca de 1.400 autópsias, 60% das quais em pessoas
acima de 50 anos. O projeto não aceita cérebros de
pessoas que morreram em conseqüência de acidentes vasculares,
traumatismo craniano ou pacientes portadores de patologias crônicas
em estado avançado, no período de seis meses anteriores
ao óbito.
Como a proposta do banco de cérebros se revelou interessante
desde o estágio piloto, atraiu a atenção de
pesquisadores de várias áreas e agora são 17
grupos complementares trabalhando em parceria. Entre outros, os
do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências
da USP, do Instituto Lud- wig e do Banco de Cérebros da Holanda.
Queremos usar a moeda da generosidade e da cooperação.
Se não impregnarmos o projeto desse espírito, no dia
do Juízo Final teremos de prestar contas e eu não
estou preparado para isso, teme Saldiva, acrescentando que
o conhecimento médico se expandiu de tal forma que os estudos
têm de ser transdisciplinares, levando em conta disciplinas
como neuroquímica, microanatomia, genética e clínica
geral.

Pesquisadores ligados ao projeto Envelhecimento
Cerebral: pesquisa conta com a generosidade das famílias,
que doam os cérebros de parentes para a ciência
O projeto do banco de tecido cerebral está em análise
na Fapesp para provável financiamento. Os pesquisadores querem
recursos, não para pagar pessoal, mas para aperfeiçoar
os equipamentos necessários para a pesquisa. Na minha
opinião, disse Saldiva, este é um projeto
em que a gente será competitivo. Esperamos recursos da agência
e também da USP. Ele observa que os programas da Pediatria
da Faculdade de Medicina são maiores do que os da Geriatria,
recomendando que a situação se inverta ou que pelo
menos se equilibre, redimensionando a aplicação de
recursos.
Diretamente com o chefe do Departamento de Patologia trabalham no
banco de cérebros os médicos Lea Tenenholz Grinberg
e José Marcelo Farfel. A pós-graduanda Renata Ferretti
é enfermeira e está encarregada de entrevistar os
parentes dos doadores de cérebros. Faz cerca de cem entrevistas
por mês.
Farfel observa que há casos em que o paciente apresenta no
final da vida sinais supostamente reveladores de comprometimento
clínico, ou indícios de doença de Alzheimer,
mas no seu cérebro não se encontram alterações
que justifiquem a suspeita; outras vezes ocorre o contrário:
encontram-se no cérebro alterações aparentemente
comprometedoras, mas o responsável pelo paciente não
relata comportamento que sugere aquela doença. Outra observação
do pesquisador é que todos os projetos de pesquisa são
submetidos ao Comitê de Ética da Faculdade de Medicina,
que é vinculado ao Comitê Nacional de Ética.

Na
origem da violência
Ao
mesmo tempo em que investiga as raízes da demência,
o professor Paulo Saldiva planeja estudar as raízes
determinantes da violência. A equipe vai trabalhar com
um banco de provas. Quase sempre as pessoas que demonstram
comportamento violento, como os serial killers e os psicopatas,
apresentam alguma conotação sexual. Na investigação
policial ou criminal é comum encontrar resíduos
de sêmen ou restos de cabelo, pistas que podem esclarecer
se os crimes foram cometidos por uma só pessoa ou por
várias. O indivíduo com criminalidade em série
costuma repetir comportamentos, segue padrões, atua
em áreas bem delimitadas, como ao longo de uma linha
de metrô, ou busca as vítimas sempre no mesmo
lugar. Isso os leva a deixar sinais comprometedores, mesmo
que na maior parte do tempo pareçam pessoas absolutamente
normais.
Se a pessoa tem um vislumbre do que está acontecendo,
pode deixar, conscientemente ou não, sinais como se
quisesse dizer ´me parem, uma vez que eu não
consigo me conter´, diz Saldiva, que menciona
dois casos típicos: o de um mecânico acusado
de matar 29 pessoas, no Maranhão, e de um psiquiatra
que abusava de adolescentes no consultório e acabou
se denunciando ao abandonar fitas de vídeo no lixo
em uma rua de São Paulo. Comportamento que o professor
Saldiva considera inconcebível em pessoas da inteligência
do acusado. Para mim estava claro que o psiquiatra queria
ser brecado, descoberto e preso, como única forma de
parar com os abusos. Mesmo em palestras que fazia antes
de ser descoberto já teriam havido indícios
de autodenúncia.
Se os médicos não sabem quase nada sobre a doença
de Alzheimer, conhecem muito menos sobre o que se passa na
cabeça de um criminoso em série. Se já
nasceu assim, se ficou assim depois. Segundo Saldiva, seguramente
existem fatores genéticos, mas também ambientais.
E se é fator genético, que eclode em determinadas
condições ambientais, será possível
que, refazendo o ambiente, a pessoa consiga voltar à
normalidade? Ou a conclusão deve ser que a tendência
é irreversível? Por essa e outras dúvidas
convém pesquisar as raízes do comportamento
anormal.
Essa tentativa vem do século 19, quando o criminalista
italiano Cesare Lombroso fazia a tipologia do criminoso pelo
exame e medição da face. Durante muito tempo
sua teoria foi aceita como verdade, mas depois se comprovou
que não tinha nada a ver. Saldiva admite que a forma
de Lombroso de responder às indagações
da ciência estava errada, mas na época não
havia outra e ela funcionava como ferramenta à mão.
Atualmente há evidências de que algumas formas
de alcoolismo têm raízes genéticas, e
é possível que o mesmo ocorra em relação
a casos de violência.
Crime
em série
O próximo projeto do Departamento de Patologia não
se limitará ao banco capaz de ajudar a polícia
na investigação do crime. Queremos saber
se existe um marcador para aquele tipo de comportamento,
afirma Saldiva, que encontrou estímulo no interesse
pelo projeto acadêmico manifestado pela escritora, pesquisadora
do Instituto de Psiquiatria do HC e especialista em crimes
repetitivos Ilana Casoy. Ilana é autora do livro Serial
Killers Made in Brazil e propôs a aplicação
da genética à análise do padrão
do crime. Ela já vem estudando determinantes genéticas
em animais. O projeto da Faculdade de Medicina lhe dará
a chance de ampliar essa linha de pesquisa.
De qualquer forma, Saldiva acredita que a maior parte dos
comportamentos criminosos seja derivada de problemas ambientais,
não genéticos. A pessoa pobre, sem expectativa
de vida melhor, sem acesso à educação,
é levada a resolver o seu problema pela prática
do crime. Assim se explicariam 90% dos comportamentos dos
adolescentes da Febem paulista. Até o comportamento
do bicho depende de como ele foi educado. Um pit-bull pode
ser criado para estraçalhar o primeiro que aparecer
na sua frente, ou para brincar com as crianças, embora
existam na sua raça características genéticas
agressivas. Acho que uma parte fundamental do comportamento
depende das condições de vida da pessoa,
diz o professor, que na qualidade de chefe de departamento
costuma enfrentar casos estranhos, como furtos de máquinas.
Algumas vezes, ele diz, a pessoa furta porque não tem
condições de manter a família; mas nem
sempre.
Outras vezes, o comportamento tribal é responsável
pela violência. Exemplo histórico são
as hordas de vikings que chegavam à costa da Inglaterra
moendo o que encontrassem pela frente; caso típico,
as torcidas organizadas, que costumam destruir orelhões,
ônibus e outros serviços públicos. Se
analisarmos cada indivíduo do grupo, talvez descubramos
que são ótimos pais, filhos ou maridos; quando
sozinhos, ajudam os velhinhos a atravessar a rua, pondera
Saldiva. Bem diferentes são os indivíduos que
atuam por compulsão, planejam estratégias de
sedução, o transporte da vítima, a forma
de matá-la. Esses estão na mira do projeto da
vio|ência.
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