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Existe nome de livro mais bonito do que Flores do mal
(Charles Baudelaire), O homem sem qualidades (Robert Musil) ou Olhai
os lírios do campo (Érico Veríssimo)? No gosto
de Jorge Luis Borges, existe: o Livro das mil e uma noites. Dele
o argentino tirou muitas das suas fantásticas criaturas.
Se mil já sugere infinitude, mil e uma vai muito além
do que a mente pode alcançar. E o melhor de tudo é
que o leitor brasileiro agora pode ler esses contos, que iam salvando
noite após noite a vida de Shahrazad da ira do traído
rei Shahriyar, em tradução direta do árabe
feita pelo professor Mamede Mustafa Jarouche, do Departamento de
Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP, e primorosamente editada pela Globo. Por
enquanto, só o primeiro dos cinco volumes previstos; os 170
primeiros dias. O resto virá até o final de 2006,
antes de mil e uma noites.
Até lá, Jarouche terá de enfrentar mil e uma
horas extenuantes, pois, segundo confessa, traduzir é um
ato de humildade e tão cansativo que, ao final da jornada,
o tradutor não está em condições de
opinar sobre o próprio trabalho. Aparentemente, preocupa-o
o caráter brutalista da obra apontado por amigos
e críticos. Mas é aí, na fidelidade ao realismo
do original árabe, que está a maior virtude da tradução.
Jarouche não é árabe, mas arabista brasileiro,
de origem libanesa; antes de se especializar em língua e
cultura árabes, doutorou-se em Literatura Brasileira com
tese sobre a obra de Manuel Antonio de Almeida (Memórias
de um sargento de milícias). Foi ótimo, porque o conhecimento
profundo das duas línguas se reflete no texto do tradutor.
Duro, mas coloquial; correto, mas semeado de gírias quando
preciso; literal quase sempre, mas justificado em notas de coluna
na própria página; sensual como exige a natureza das
personagens, mas lírico como a amizade entre as irmãs
Shahrazad e Dinarzad; humano como os modelos de carne e osso das
histórias, mas etéreo às vezes como o demônio
Ifrit que, quando lhe convém, sabe passar do estado gasoso
para o sólido.
Jarouche não consultou nenhuma tradução brasileira,
porque considera estímulo à ignorância,
manifestação de provincianismo toda tradução
indireta, feita não do original mas de traduções
do francês, do inglês, do alemão ou outra língua
qualquer. E é isso que existe no Brasil, segundo ele. O professor
jogou fora todos os livros traduzidos por intermediários,
não só das Mil e uma noites, mas de títulos
de autores russos, chineses, japoneses e outros mais. Imagine,
por exemplo, se os italianos vão traduzir Ulisses (James
Joyce) a partir da tradução brasileira de Antônio
Houaiss; ou se os franceses vão traduzir Aristóteles
com base numa tradução brasileira. Manter contato
com a cultura do país do autor que se quer traduzir é
fundamental, afirma. Felizmente, nas universidades brasileiras já
existem tradutores qualificados, mesmo em línguas tradicionalmente
distantes como japonês, chinês, hebraico ou sânscrito.
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Contato com a cultura árabe o tradutor teve desde garoto.
Em 1981, ficou um ano na Arábia Saudita, onde se interessou
pela língua árabe; em 1985, fez estágio no
Iraque; cinco anos depois, trabalhou como tradutor na Líbia,
contratado pela Braspetro, estatal dedicada a perfurar poços
profundos, num amplo projeto do governo local de transformar a paisagem
desértica em área produtiva (a empresa enfrentou problemas
graves e chegou a ser processada no Tribunal Internacional de Haia).
Já no pós-doutorado, no ano 2000, fez estudos no Egito
e recolheu documentos em bibliotecas européias, especialmente
da Espanha, para o projeto de tradução.
Origens Assim como a Ilíada e a Odisséia
que, embora sejam tradicionalmente atribuídas a Homero, para
alguns críticos não têm autoria claramente definida
e a Bíblia, as origens do Livro das mil e uma noites
perdem-se no anonimato. Segundo Jarouche, contudo, isso não
quer dizer que não haja um autor empírico e é
preciso evitar equívocos, imaginando que a obra seja um amontoado
de histórias orais em estado caótico. O nome do autor
não chegou até nós e com certeza não
se trata de autor nos padrões românticos, uma
autoria pensada, expressão demiúrgica de uma individualidade
que se manifeste no texto. Alguém escreveu o texto
básico, que depois deve ter recebido acréscimos de
outras fontes.
A forma mais antiga remonta ao século 13, quando abrangia
282 noites, sendo que a última história está
incompleta, o que sugere continuação. As primeiras
narrativas parecem ter origem na Mesopotâmia, no Iraque; outras
teriam sido criadas no Egito. Alguns episódios circulavam
de forma independente e foram traduzidos do sânscrito. O certo
é que manuscritos do século 18 já têm
mil e uma noites.
O tradutor cita como evidência de acréscimos a tentativa
de encaixar no texto primitivo uma narrativa preexistente no século
9, chamada Alívio após o sofrimento. Conta
o caso de um jovem que perdera os dedos das mãos e dos pés
por ordem da mulher, de origem nobre, que se enfurecera porque o
noivo, antes das núpcias, comeu alguma coisa de odor forte
e não lavou as mãos. A história original continha
apenas a censura da futura esposa ao noivo, por questão de
etiqueta, mas ao ser transplantada para o Livro das mil e uma noites
adquiriu caráter de violência. Apropriadamente por
sinal, porque o contexto era de mutilação. Considero
essa uma das piores histórias do livro, diz Jarouche.
Outro exemplo de aproveitamento de uma história, ou lenda,
em outro contexto é brasileiro. Nas Memórias de um
sargento de milícias, conta-se o caso de um mentiroso contumaz
que teria saído ileso de um navio emborcado, pulando de pote
em pote, que segundo ele, se infileiravam na água, do navio
até a praia. A mesma história está presente
em artigo de Martins Pena. Pena e Manuel de Almeida fizeram adaptações
do conto do mentiroso, de acordo com a conveniência do momento.
Do mesmo modo que deve ter ocorrido com as histórias árabes.
Também não se pode esquecer que a biblioteca de Bagdá,
a mais importante do mundo na época, foi destruída
pelos mongóis, que invadiram a cidade em 1258. Quem garante
que outras fontes do Livro das mil e uma noites não tenham
sido queimadas? Antes disso, ainda no século 10, o catálogo
do livreiro Amadim Alwarrasq, que incluiria todas as obras publicadas
até então, cita livros desaparecidos. Talvez exemplares
da obra agora traduzida para o português do Brasil estivessem
lá também.
No Ocidente, o Livro das mil e uma noites popularizou-se com a tradução
de Jean Antoine Galland, maronita libanês, francês de
origem, que no século 18 fez com maior competência
o que os tradutores brasileiros costumam fazer com outras obras:
foi além do texto original, introduziu poemas, inventou contos
e personagens Aladim, Ali Babá... Outro arabista francês
traduziu os acréscimos de Galland para o árabe, que
passaram a integrar a coleção das mil e uma noites.
A tradução de Jarouche não deixará essas
histórias de fora, mas ficarão num anexo, com a advertência
de que não fazem parte do original.
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Feminista?
Será que o Livro das mil e uma noites, à semelhança
das grandes obras universais, tem algum sentido mais profundo, alguma
lição humanista, sociológica? Para Jarouche,
sua maior virtude é ser maleável, uma narrativa fluida
que arrebata leitores de todos os continentes. Por isso mesmo, se
presta a várias apropriações. Seria, porém,
anacrônico considerá-lo um livro feminista, embora
na atualidade mulheres orientais às vezes assim o considerem,
tendo em vista que, pela astúcia da narrativa, Shahrazad
salvou a sua vida e a de muitas companheiras. Mais coerente seria
considerá-lo como elogio à leitura, discurso como
salvador de vidas.
Liberdade na interpretação, e até de fazer
blague, é o que propõe Borges. Brincando, o escritor
argentino dizia que a melhor tradução do Livro das
mil e uma noites (e de qualquer outro) é aquela que consegue
ser a menos fiel ao original. Em uma de suas composições
que tinha Ulisses por personagem, Borges dizia que o herói
homérico chorou ao avistar Ítaca ao longe. Advertido
por Stella Canto, sua amiga, de que cometia um erro histórico,
pois Ulisses dormia no retorno à sua terra, o escritor respondeu
que isso não tinha a menor importância. Com sua blague
literária certamente pretendia reforçar o entendimento
de que nenhum texto deve ter mão única, mas cada leitor
pode interpretá-lo à sua maneira.
Em matéria de suspense, não há técnica
mais acabada do que o recurso usado por Shahrazad para conter o
ímpeto do rei de casar toda noite com uma mulher diferente
e de manhã matá-la inexoravelmente. Suspense retórico,
segundo o tradutor, porque para o leitor a continuação
da história está algumas linhas adiante. Mas nada
retórico para os produtores de novelas de rádio e
televisão, que, no ponto mais quente do enredo, remetem a
continuação da história para o dia ou a semana
seguinte, a fim de segurar o ouvinte ou o espectador. No livro árabe,
o suspense espelha a situação em que se encontra a
narradora: o rei precisa refletir sobre suas próprias ações,
desistir de matar, para não imitar a personagem perversa
da história interrompida. São analogias que forçam
a reflexão, diz Jarouche.
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Transcrição
Tradutor e editores tiveram de enfrentar um problema bem menos cerebrino
na hora de fazer a transcrição dos nomes árabes,
pois o idioma árabe tem sons que não existem em português.
O nome da narradora, por exemplo, poderia ser grafado de várias
maneiras, mas era importante indicar que é aspirado. Tradutor
e editores optaram então por adotar o alfabeto fonético
internacional. Jarouche usou fonte árabe do Windows, própria
para grafar todos os sinais exigidos, mas no Macintosh dos diagramadores
tudo saía diferente. Foi preciso criar novas fontes. O
s com chifrinho é o mais difícil, conta o professor
(também por razões técnicas, os nomes árabes
citados nesta reportagem não usam a transcrição
conforme a convenção internacional).
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Deixe
que ele me mate
A
seguir, trecho do Livro das mil e uma noites, em tradução
de Mamede Jarouche:
Certo dia, Shahrazad disse ao pai: Eu vou lhe
revelar, papai, o que me anda oculto pela mente. Ele
perguntou: E o que é? Ela respondeu: Eu
gostaria que você me casasse com o rei Shahriyar. Ou
me converto em um motivo para a salvação das
pessoas ou morro e me acabo, tornando-me igual a quem morreu
e acabou. Ao ouvir as palavras da filha, o vizir se
encolerizou e disse: Sua desajuizada! Será que
você não sabe que o rei Shahriyar jurou que não
passaria com nenhuma moça senão uma só
noite, matando-a ao amanhecer? Se eu consentir nisso, ele
vai passar apenas uma noite com você, e logo que amanhecer
ele vai me ordenar que a mate, e eu terei de matá-la,
pois não posso discordar dele. Ela disse: É
absolutamente imperioso, papai, que você me dê
em casamento a ele; deixe que ele me mate. Disse o vizir:
E o que está levando você a colocar sua
vida assim em risco? Ela disse: É absolutamente
imperioso, papai, que você me dê a ele em casamento:
uma só palavra e uma ação resoluta.
Então o vizir se encolerizou e disse: Filhinha,
Quem não sabe lidar com as coisas incide no que
é vedado, Quem não mede as conseqüências
não tem o destino como amigo. E, como se diz
num provérbio corrente, Eu estava tranqüilo
e sossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado.
Eu temo que lhe suceda o mesmo que sucedeu ao burro e ao boi
da parte do lavrador. Ela perguntou:
E o que sucedeu, papai,
ao burro e ao boi da
parte do lavrador?.
Ele disse:...
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