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O professor Mamede Jarouche
nem sequer consultou as versões
indiretas do clássico árabe: traduções da obra a partir
do francês, do inglês, do alemão ou de qualquer outro idioma é
"um estímulo à ignorância, uma manifestação de provincianismo"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 





Livro das mil e uma noites,
volume I, ramo sírio, tradução direta do árabe por Mamede Mustafá Jarouche, Editora Globo, 422 páginas,
R$ 55,00

 

 

 


E
xiste nome de livro mais bonito do que Flores do mal (Charles Baudelaire), O homem sem qualidades (Robert Musil) ou Olhai os lírios do campo (Érico Veríssimo)? No gosto de Jorge Luis Borges, existe: o Livro das mil e uma noites. Dele o argentino tirou muitas das suas fantásticas criaturas. Se mil já sugere infinitude, mil e uma vai muito além do que a mente pode alcançar. E o melhor de tudo é que o leitor brasileiro agora pode ler esses contos, que iam salvando noite após noite a vida de Shahrazad da ira do traído rei Shahriyar, em tradução direta do árabe feita pelo professor Mamede Mustafa Jarouche, do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e primorosamente editada pela Globo. Por enquanto, só o primeiro dos cinco volumes previstos; os 170 primeiros dias. O resto virá até o final de 2006, antes de mil e uma noites.

Até lá, Jarouche terá de enfrentar mil e uma horas extenuantes, pois, segundo confessa, traduzir é um ato de humildade e tão cansativo que, ao final da jornada, o tradutor não está em condições de opinar sobre o próprio trabalho. Aparentemente, preocupa-o o “caráter brutalista” da obra apontado por amigos e críticos. Mas é aí, na fidelidade ao realismo do original árabe, que está a maior virtude da tradução. Jarouche não é árabe, mas arabista brasileiro, de origem libanesa; antes de se especializar em língua e cultura árabes, doutorou-se em Literatura Brasileira com tese sobre a obra de Manuel Antonio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias). Foi ótimo, porque o conhecimento profundo das duas línguas se reflete no texto do tradutor. Duro, mas coloquial; correto, mas semeado de gírias quando preciso; literal quase sempre, mas justificado em notas de coluna na própria página; sensual como exige a natureza das personagens, mas lírico como a amizade entre as irmãs Shahrazad e Dinarzad; humano como os modelos de carne e osso das histórias, mas etéreo às vezes como o demônio Ifrit que, quando lhe convém, sabe passar do estado gasoso para o sólido.

Jarouche não consultou nenhuma tradução brasileira, porque considera “estímulo à ignorância, manifestação de provincianismo” toda tradução indireta, feita não do original mas de traduções do francês, do inglês, do alemão ou outra língua qualquer. E é isso que existe no Brasil, segundo ele. O professor jogou fora todos os livros traduzidos por “intermediários”, não só das Mil e uma noites, mas de títulos de autores russos, chineses, japoneses e outros mais. “Imagine, por exemplo, se os italianos vão traduzir Ulisses (James Joyce) a partir da tradução brasileira de Antônio Houaiss; ou se os franceses vão traduzir Aristóteles com base numa tradução brasileira.” Manter contato com a cultura do país do autor que se quer traduzir é fundamental, afirma. Felizmente, nas universidades brasileiras já existem tradutores qualificados, mesmo em línguas tradicionalmente distantes como japonês, chinês, hebraico ou sânscrito.

 




Contato com a cultura árabe o tradutor teve desde garoto. Em 1981, ficou um ano na Arábia Saudita, onde se interessou pela língua árabe; em 1985, fez estágio no Iraque; cinco anos depois, trabalhou como tradutor na Líbia, contratado pela Braspetro, estatal dedicada a perfurar poços profundos, num amplo projeto do governo local de transformar a paisagem desértica em área produtiva (a empresa enfrentou problemas graves e chegou a ser processada no Tribunal Internacional de Haia). Já no pós-doutorado, no ano 2000, fez estudos no Egito e recolheu documentos em bibliotecas européias, especialmente da Espanha, para o projeto de tradução.

Origens – Assim como a Ilíada e a Odisséia – que, embora sejam tradicionalmente atribuídas a Homero, para alguns críticos não têm autoria claramente definida – e a Bíblia, as origens do Livro das mil e uma noites perdem-se no anonimato. Segundo Jarouche, contudo, isso não quer dizer que não haja um autor empírico e é preciso evitar equívocos, imaginando que a obra seja um amontoado de histórias orais em estado caótico. O nome do autor não chegou até nós e com certeza não se trata de autor nos padrões românticos, “uma autoria pensada, expressão demiúrgica de uma individualidade que se manifeste no texto”. Alguém escreveu o texto básico, que depois deve ter recebido acréscimos de outras fontes.

A forma mais antiga remonta ao século 13, quando abrangia 282 noites, sendo que a última história está incompleta, o que sugere continuação. As primeiras narrativas parecem ter origem na Mesopotâmia, no Iraque; outras teriam sido criadas no Egito. Alguns episódios circulavam de forma independente e foram traduzidos do sânscrito. O certo é que manuscritos do século 18 já têm mil e uma noites.

O tradutor cita como evidência de acréscimos a tentativa de encaixar no texto primitivo uma narrativa preexistente no século 9, chamada “Alívio após o sofrimento”. Conta o caso de um jovem que perdera os dedos das mãos e dos pés por ordem da mulher, de origem nobre, que se enfurecera porque o noivo, antes das núpcias, comeu alguma coisa de odor forte e não lavou as mãos. A história original continha apenas a censura da futura esposa ao noivo, por questão de etiqueta, mas ao ser transplantada para o Livro das mil e uma noites adquiriu caráter de violência. Apropriadamente por sinal, porque o contexto era de mutilação. “Considero essa uma das piores histórias do livro”, diz Jarouche. Outro exemplo de aproveitamento de uma história, ou lenda, em outro contexto é brasileiro. Nas Memórias de um sargento de milícias, conta-se o caso de um mentiroso contumaz que teria saído ileso de um navio emborcado, pulando de pote em pote, que segundo ele, se infileiravam na água, do navio até a praia. A mesma história está presente em artigo de Martins Pena. Pena e Manuel de Almeida fizeram adaptações do conto do mentiroso, de acordo com a conveniência do momento. Do mesmo modo que deve ter ocorrido com as histórias árabes. Também não se pode esquecer que a biblioteca de Bagdá, a mais importante do mundo na época, foi destruída pelos mongóis, que invadiram a cidade em 1258. Quem garante que outras fontes do Livro das mil e uma noites não tenham sido queimadas? Antes disso, ainda no século 10, o catálogo do livreiro Amadim Alwarrasq, que incluiria todas as obras publicadas até então, cita livros desaparecidos. Talvez exemplares da obra agora traduzida para o português do Brasil estivessem lá também.

No Ocidente, o Livro das mil e uma noites popularizou-se com a tradução de Jean Antoine Galland, maronita libanês, francês de origem, que no século 18 fez com maior competência o que os tradutores brasileiros costumam fazer com outras obras: foi além do texto original, introduziu poemas, inventou contos e personagens – Aladim, Ali Babá... Outro arabista francês traduziu os acréscimos de Galland para o árabe, que passaram a integrar a coleção das mil e uma noites. A tradução de Jarouche não deixará essas histórias de fora, mas ficarão num anexo, com a advertência de que não fazem parte do original.

 


 

Feminista?

Será que o Livro das mil e uma noites, à semelhança das grandes obras universais, tem algum sentido mais profundo, alguma lição humanista, sociológica? Para Jarouche, sua maior virtude é ser maleável, uma narrativa fluida que arrebata leitores de todos os continentes. Por isso mesmo, se presta a várias apropriações. Seria, porém, anacrônico considerá-lo um livro feminista, embora na atualidade mulheres orientais às vezes assim o considerem, tendo em vista que, pela astúcia da narrativa, Shahrazad salvou a sua vida e a de muitas companheiras. Mais coerente seria considerá-lo como elogio à leitura, discurso como salvador de vidas.

Liberdade na interpretação, e até de fazer blague, é o que propõe Borges. Brincando, o escritor argentino dizia que a melhor tradução do Livro das mil e uma noites (e de qualquer outro) é aquela que consegue ser a menos fiel ao original. Em uma de suas composições que tinha Ulisses por personagem, Borges dizia que o herói homérico chorou ao avistar Ítaca ao longe. Advertido por Stella Canto, sua amiga, de que cometia um erro histórico, pois Ulisses dormia no retorno à sua terra, o escritor respondeu que isso não tinha a menor importância. Com sua blague literária certamente pretendia reforçar o entendimento de que nenhum texto deve ter mão única, mas cada leitor pode interpretá-lo à sua maneira.

Em matéria de suspense, não há técnica mais acabada do que o recurso usado por Shahrazad para conter o ímpeto do rei de casar toda noite com uma mulher diferente e de manhã matá-la inexoravelmente. Suspense retórico, segundo o tradutor, porque para o leitor a continuação da história está algumas linhas adiante. Mas nada retórico para os produtores de novelas de rádio e televisão, que, no ponto mais quente do enredo, remetem a continuação da história para o dia ou a semana seguinte, a fim de segurar o ouvinte ou o espectador. No livro árabe, o suspense espelha a situação em que se encontra a narradora: o rei precisa refletir sobre suas próprias ações, desistir de matar, para não imitar a personagem perversa da história interrompida. São analogias que forçam a reflexão, diz Jarouche.



Transcrição

Tradutor e editores tiveram de enfrentar um problema bem menos cerebrino na hora de fazer a transcrição dos nomes árabes, pois o idioma árabe tem sons que não existem em português. O nome da narradora, por exemplo, poderia ser grafado de várias maneiras, mas era importante indicar que é aspirado. Tradutor e editores optaram então por adotar o alfabeto fonético internacional. Jarouche usou fonte árabe do Windows, própria para grafar todos os sinais exigidos, mas no Macintosh dos diagramadores tudo saía diferente. Foi preciso criar novas fontes. “O s com chifrinho é o mais difícil”, conta o professor (também por razões técnicas, os nomes árabes citados nesta reportagem não usam a transcrição conforme a convenção internacional).


“Deixe que ele me mate”

A seguir, trecho do Livro das mil e uma noites, em tradução de Mamede Jarouche:

“Certo dia, Shahrazad disse ao pai: ‘Eu vou lhe revelar, papai, o que me anda oculto pela mente’. Ele perguntou: ‘E o que é?’ Ela respondeu: ‘Eu gostaria que você me casasse com o rei Shahriyar. Ou me converto em um motivo para a salvação das pessoas ou morro e me acabo, tornando-me igual a quem morreu e acabou’. Ao ouvir as palavras da filha, o vizir se encolerizou e disse: ‘Sua desajuizada! Será que você não sabe que o rei Shahriyar jurou que não passaria com nenhuma moça senão uma só noite, matando-a ao amanhecer? Se eu consentir nisso, ele vai passar apenas uma noite com você, e logo que amanhecer ele vai me ordenar que a mate, e eu terei de matá-la, pois não posso discordar dele’. Ela disse: ‘É absolutamente imperioso, papai, que você me dê em casamento a ele; deixe que ele me mate’. Disse o vizir: ‘E o que está levando você a colocar sua vida assim em risco?’ Ela disse: ‘É absolutamente imperioso, papai, que você me dê a ele em casamento: uma só palavra e uma ação resoluta’. Então o vizir se encolerizou e disse: ‘Filhinha, ‘Quem não sabe lidar com as coisas incide no que é vedado’, ‘Quem não mede as conseqüências não tem o destino como amigo’. E, como se diz num provérbio corrente, ‘Eu estava tranqüilo e sossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado’. Eu temo que lhe suceda o mesmo que sucedeu ao burro e ao boi da parte do lavrador’. Ela perguntou:

‘E o que sucedeu, papai,
ao burro e ao boi da
parte do lavrador?’.
Ele disse:...”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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