A mortalidade por Aids na cidade de São Paulo
vem decaindo, processo verificado também em vários
países que têm implantado programas efetivos de prevenção
e acesso universal e gratuito a tratamentos com medicamentos anti-retrovirais.
Esses tratamentos assim denominados porque o HIV, causador
da doença, é um retrovírus combinam
várias drogas que reduzem a carga viral no paciente, possibilitando,
em alguns casos, que a Aids seja tratada como uma doença
crônica, a exemplo de diabetes ou hipertensão arterial.
Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Odontologia da USP apresenta
resultados importantes sobre o programa de distribuição
desses medicamentos para os pacientes em São Paulo. Os dados
foram reconhecidos pela International Journal Epidemiology, uma
revista internacional de bastante impacto na área de saúde
pública.
Verificamos que, entre 1995 e 2002, a mortalidade anual por
Aids em São Paulo foi reduzida em 65%, e que essa redução
foi proporcionalmente mais intensa nas áreas da cidade onde
a mortalidade estava mais elevada durante a primeira metade dos
anos 90, explica José Leopoldo Antunes, professor e
pesquisador da Faculdade de Odontologia. A equipe foi constituída
por Eliseu Alves Waldman, médico especialista em Epidemiologia
das Doenças Infecciosas e docente da Faculdade de Saúde
Pública da USP; Carme Borrell, médica e pesquisadora
da Agência de Saúde Pública de Barcelona, na
Espanha, uma das mais importantes referências internacionais
na área de desigualdades em saúde; e Antunes, sociólogo
que há muitos anos trabalha com o tema de desigualdades sociais
em saúde.
Os objetivos principais do estudo foram descrever quantitativamente
o declínio recente da mortalidade por Aids na cidade de São
Paulo (no geral e em cada um de seus distritos) e verificar se houve
associação entre as taxas de declínio e os
indicadores de desenvolvimento social e condições
de vida desses distritos. Antunes conta que, embora se soubesse
que a Aids afetava intensamente os bairros mais pobres da cidade,
existia a preocupação de que nesses bairros o declínio
da mortalidade tivesse sido menos intenso, o que demandaria ações
compensatórias dos serviços de saúde.
Achado
Um primeiro e importante achado do trabalho diz respeito à
quantificação da taxa de declínio da mortalidade
por Aids para cada distrito. Além da redução
global de 65% no período estudado, verificou-se que apenas
15 distritos mantiveram taxas de mortalidade estacionária,
enquanto 81 apresentaram declínio mais ou menos intenso.
Um segundo e não menos importante achado foi que, ao contrário
do que se supunha inicialmente, esse declínio não
esteve associado aos indicadores de condição social
dos bairros. A pesquisa levou em conta índices como renda
média, coeficiente de Gini (uma medida da desigualdade na
distribuição de renda que também reflete a
concentração de pobreza), taxa de analfabetismo, aglomeração
domiciliar e o índice de desenvolvimento humano (uma medida
sintética proposta por uma agência da ONU e que foi
avaliada para cada bairro da cidade), entre outros.
Segundo Antunes, nas regiões em que foi possível implementar
programas efetivos de prevenção e garantir amplo acesso
ao tratamento com medicamentos anti-retrovirais, observou-se ponderável
declínio de mortalidade. No entanto, mesmo quando a
distribuição desses medicamentos era gratuita, havia
que se considerar diferenciais socioeconômicos desses programas,
pois os pacientes mais pobres e menos instruídos podem ter
mais dificuldade em manter uma adesão estrita a um esquema
terapêutico complexo e que muitas vezes envolve efeitos colaterais
intensos, explica.
A pesquisa considerou todos os óbitos por Aids ocorridos
na cidade no período estudado. A hipótese inicial
era de que as áreas da cidade com melhor condição
social tivessem experimentado maior redução de mortalidade,
beneficiando-se de modo mais intenso dos programas de saúde
que propiciaram esse declínio. Essa hipótese era dirigida
pela proposição original do professor César
Victora, da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul
pesquisador que recentemente ganhou o prêmio Conrado
Wessel, a mais importante premiação em medicina do
País.
Realização
notável
De acordo com a hipótese da eqüidade inversa, intervenções
em saúde, mesmo quando bem-sucedidas em reduzir os níveis
globais de doenças na população, têm
em geral como efeito adverso o aumento da desigualdade na experiência
da doença. Isso ocorreria porque os programas de saúde
tendem a beneficiar mais intensamente as camadas da população
mais bem situadas do ponto de vista socioeconômico, e só
posteriormente acabam se estendendo para os mais pobres. Desse
modo, esclarece Antunes, os estratos sociais mais fortemente
submetidos à privação não desfrutam
de imediato dos recursos disponíveis em saúde, e até
ações muito simples têm seus resultados distribuídos
de modo não homogêneo entre a população.
A hipótese inicial da pesquisa era que isso também
estaria ocorrendo com a mortalidade por Aids. Como não era
possível obter informações socioeconômicas
sobre todas as pessoas que faleceram da doença nesse período,
mas era conhecido seu endereço de moradia, a estratégia
utilizada consistiu em examinar a tendência de declínio
nos diferentes bairros da cidade. Levou-se em conta também
que há desigualdade socioeconômica entre os moradores
de um mesmo bairro.
A pesquisa demonstrou que a redução da mortalidade
foi proporcionalmente mais intensa nos bairros com mais mortalidade,
sem que a taxa de redução se associasse com os indicadores
de condição social dos distritos. Isso quer dizer
que a hipótese inicialmente considerada da eqüidade
inversa não foi observada, e que é factível
a perspectiva de que programas de saúde com aplicação
universal propiciem a redução dos níveis de
doença ao mesmo tempo em que contribuem para a redução
da desigualdade em sua experiência.
Para a publicação na International Journal of Epidemiology,
foram feitos dois editoriais. Antunes explica que o primeiro consiste
em uma indicação para leituras, referenciando o estudo
no âmbito de uma avaliação da importância
desse periódico científico para os estudos sobre desigualdade
social na experiência de doença e no acesso a tratamentos
médicos. O segundo editorial inseriu o estudo em uma agenda
de temas de pesquisa para avaliar o impacto da terapêutica
anti-retroviral no contexto internacional.
Nossa observação de que o declínio da
mortalidade por Aids não esteve associado aos diferenciais
socioeconômicos dos bairros da cidade foi classificada pelo
editor como uma realização verdadeiramente notável
em saúde, apesar de não se poder afastar a possibilidade
de outros fatores de falta de eqüidade, como diferenciais de
gênero, de condição urbana e rural, ou mesmo
de ordem socioeconômica para outras regiões do Estado
de São Paulo e do Brasil, aspectos não contemplados
em nosso estudo, diz Antunes. São resultados especialmente
relevantes, salienta o pesquisador, porque o estudo pôde contabilizar
respostas favoráveis do serviço público de
saúde para uma população muito sofrida e submetida
a grandes adversidades.
Tratamento
precisa chegar ao interior
Das
denominadas doenças infecciosas emergentes, a Aids
é a que mais se destaca, em função de
sua elevada incidência e mortalidade, e afeta de modo
mais intenso os estratos sociais mais submetidos à
privação material. Em regiões como a
África, é a principal causa de mortes de adultos,
com elevadíssimo custo humano e social.
O Brasil tem sido internacionalmente reconhecido pelo esforço
de seu programa de prevenção e tratamento dos
doentes e, mais recentemente, tem apoiado esforços
internacionais para a implementação da produção
local de medicamentos anti-retrovirais em países mais
pobres.
A Organização Mundial da Saúde (OMS)
estima em 86% a cobertura de acesso a tratamento anti-retroviral
para os doentes de Aids no Brasil, número bastante
elevado quando comparado ao de outros países com necessidades
e condições semelhantes. A manutenção
dessa cobertura em patamares elevados demonstra um intenso
esforço por parte do serviço de saúde.
É motivo de satisfação poder identificar
indicadores favoráveis desse esforço em São
Paulo, comemora o pesquisador José Leopoldo Antunes.
Não obstante a observação favorável,
é importante não relaxar após as conquistas
contabilizadas e se preparar para enfrentar os novos desafios
apresentados pelo perfil epidemiológico da doença,
como sua difusão dos grandes centros urbanos para o
interior do País, onde os programas de prevenção
e de tratamento dos doentes podem encontrar ainda maiores
dificuldades para uma efetiva implementação,
defende.
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