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Revista USP, número 68, publicação
da Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP
(telefone 11 3091-4403), 340 páginas. |
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Eu
Pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu
de um africano ou de um asiático, mas tal facilidade desaparece
completamente quando procuramos evidência dessas diferenças
raciais no genoma das pessoas, afirmam os professores Sérgio
Pena e Telma Birchal, da Universidade Federal de Minas Gerais,
no artigo “A inexistência biológica versus
a existência social de raças humanas”. Mas,
apesar de ser invisível para a genética, a diferenciação
entre as raças persiste nas sociedades como uma construção
social, política e histórica, que já motivou
grandes conflitos na história da humanidade.
Consciente
disso, a recém-lançada edição
68 da Revista USP dedica seu dossiê – principal parte
da publicação – à discussão sobre
o racismo. São antropólogos, sociólogos, cientistas
e profissionais de diversas áreas que, em 18 artigos, pensam
o tema sob seus mais diversos aspectos. E já está sendo
preparado um segundo volume. “Pela sua complexidade, extensão
e profundidade, o tema pareceu importante demais para ser relegado
a um só exemplar”, explica o editor da revista, jornalista
Francisco Costa, no editorial. Ele esclarece que, se nesse primeiro
volume o tema já é tratado de maneira múltipla,
o dossiê seguinte ampliará ainda mais o leque de
abordagens.
O
artigo de Pena e Telma – incluído no dossiê – trata
exatamente da inexistência das raças humanas do
ponto de vista biológico, face à sua inegável
existência
social. Além de citar diversos estudos que comprovam
a invisibilidade genética das raças, os autores
mostram que essa revelação
científica tem, ou pelo menos deveria ter, uma importante
função social. “Essa fato científico
deve ser absorvido pela sociedade e incorporado a suas convicções
e atitudes morais”, afirmam os professores. Nesse sentido,
a ciência teria um poder libertador capaz de afastar
os “erros
e preconceitos” da sociedade. A luta seria, nesse caso,
contra a existência do conceito de raça em si,
não
contra as desigualdades raciais, como costuma acontecer. Mas,
segundo os autores, persiste no Brasil um preconceito social
que parece estar particularmente conectado com a aparência
física
da pessoa, privilegiando as características associadas
ao branco europeu. Não só a cor da pele, mas
a pigmentação
dos olhos, o tipo do cabelo, a forma do nariz e dos lábios
teriam influência nessa classificação.
Racismo
peculiar – Se o racismo já parece injustificável
em qualquer lugar do mundo, no Brasil ele ganha um agravante. Como
lembra a professora Lilia Moritz Schwarcz em seu artigo, o Brasil é um
país marcado por um processo de exclusão social e
econômica, mas é, ao mesmo tempo, uma nação
de costumes e hábitos miscigenados. Segundo
o critério de autoclassificação do
Censo do IBGE de 2000, a população brasileira é composta
por 53,4% de brancos, 6,1% de pretos e 38,9% de pardos. O mais
curioso, no entanto, é que, segundo um estudo feito por
Pena em 2000, analisando marcadores genômicos de linhagem,
independente da cor, a maioria dos brasileiros tem um grau significativo
de ancestralidade africana, européia e ameríndia.
O brasileiro é resultado de uma mistura racial. Talvez por
isso o racismo declarado não tenha tanto espaço no
Brasil como em outros países, sendo substituído por
um “preconceito social privado”, que, segundo o artigo
de Lilia, parece negar a desigualdade e a exclusão, admitindo-a
apenas no circuito mais íntimo e não-oficial. Vive-se
um racismo velado.
A
forma peculiar do racismo brasileiro também é discutida
no artigo “A questão racial brasileira vista por três
professores”. O texto foi elaborado a partir de entrevistas
realizadas com três professores da USP: o sociólogo
Florestan Fernandes – falecido em 1995 –, o antropólogo
João Baptista Borges Pereira, professor da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e o também
sociólogo Oracy Nogueira, professor da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade (FEA) da USP. “As
entrevistas foram publicadas, pela primeira vez, em 1966, mas elas
são atuais porque, se por um lado os tempos mudaram, existindo
hoje muito mais pesquisas sobre o tema, por outro, muitas das demandas
dos autores não foram atendidas e ainda merecem reflexão”,
afirma Lilia, que organizou os depoimentos.
Na
sua entrevista, Florestan Fernandes explica que a tão
ostentada democracia racial brasileira é um mito. “Confundimos
tolerância racial com democracia racial”, afirma, explicando
que democracia significa, fundamentalmente, igualdade racial, econômica
e política. O sociólogo mostra que o tipo de racismo
brasileiro veio do modelo de relação entre o negro
escravo e o branco senhor e que, depois da abolição,
a discriminação continuou acontecendo, mas foi ganhando,
pouco a pouco, um caráter sutil e dissimulado.
Para
Oracy Nogueira, o que caracteriza o racismo brasileiro é a
discriminação no lugar da segregação. “A
discriminação é um processo de marginalização
social e cultural imposta ao homem ou ao grupo ‘diferente’”,
explica, lembrando que a segregação, por outro lado, é o
que conduz ao isolamento, inclusive geográfico,
do grupo discriminado.
Uma
outra diferença em relação ao negro americano,
que sofre muito mais a segregação, é apontada
por Nogueira. Segundo ele, o negro americano é vítima
do preconceito de origem, enquanto o brasileiro é envolvido
pelo preconceito de “marca”. No primeiro, basta o indivíduo
ter em sua ascendência alguém de cor negra para sofrer
o preconceito. No segundo, o que conta é a aparência
física, a presença, ou não, dos traços
marcantes da raça negra, e não a ascendência.
A dissimulação do preconceito, aliada ao fato de
a realidade racial brasileira ser examinada à luz de modelos
americanos, é o que, segundo o professor, acabou desnorteando
alguns estudiosos, levando-os à conclusão de que
no Brasil não havia preconceito racial.
Nogueira
conclui que a condição específica
da questão racial no Brasil, além de dificultar uma
análise clara, entrava os próprios processos de combate
ao racismo. “Enquanto se pode pensar em medidas para atenuar
as ações discriminatórias e segregatórias,
pois estas se exteriorizam num plano manipulável pelo sistema
formal de controle social, o mesmo não parece ocorrer em
relação ao preconceito”, aponta.
A
nova edição da Revista USP publica ainda artigos
sobre as iniciativas oficiais diante da diversidade racial do Brasil,
sobre os fundamentos antropológicos das raças no
Brasil e sobre a situação do negro nas universidades,
incluindo o polêmico tema das cotas (leia o texto
ao lado).
Além do dossiê sobre racismo, a revista publica seis
ensaios sobre a obra do escritor gaúcho Erico Veríssimo,
entre eles “O golpe de 1964 e a obra de Erico Veríssimo”,
de Flávio Aguiar, e “Erico Veríssimo: encontros
e desencontros da ficção com a história”,
de Sandra Jatahy Pesavento. A seção Textos traz os
artigos “Antero de Quental e Leão Tolstoi: um episódio
das relações culturais Rússia/Ocidente”,
de Boris Schnaiderman, e “O ‘neopentecostalismo macumbeiro’”,
de Ari Pedro Oro. |
“Ai, mulata assanhada”
Refletir sobre o modo como a moderna
canção popular urbana brasileira representou a imagem
dos negros, sobretudo mulatos e mestiços, é o objetivo
do artigo “Lendo canções e arriscando um refrão”,
da professora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas
Gerais, e da professora Lilia Moritz Schwarcz, da USP, publicado
na nova edição da Revista USP, dedicada à discussão
sobre racismo. As canções são consideradas pelas
autoras como uma forma muito peculiar de narrativa, que manifesta
um conjunto de valores, sentimentos e idéias sobre a realidade
a seu redor.
Apesar de tratar da questão racial de maneiras diferentes
ao longo do tempo, existe, segundo as autoras, um tema que persiste,
principalmente na primeira metade do século 20. Trata-se da “democracia
racial” e toda a ambigüidade presente no termo, já que
democracia remete a igualdade, enquanto “raça” aponta
para uma manutenção da hierarquia e da diferença.
Essa incoerência, entretanto, como é típico das
manifestações culturais brasileiras, é vista
nas canções com muita ironia e humor. O samba, por
exemplo, é um gênero que trata muito da questão
da democracia, colocando-se como uma manifestação artística
capaz de inserir o negro sambista nos redutos antes reservados às
elites brancas. A música Professor de violão, de Sinhô,
de 1931, mostra exatamente isso:
Até que enfim eu já vi
O violão ter valor
Ser dedilhado
Pela elite toda em flor
Já pode um preto cantar
Na casa do senador
Que tem palminha
Desde os filhos ao doutor
As canções citadas
no artigo também expressam
a constante busca do brasileiro por sua autenticidade nacional, a
diferenciação em relação ao outro, estrangeiro,
europeu. Nesse contexto, nasce outra personagem de extrema importância
nacional, capaz de unir em sua figura todo o ideal da mestiçagem:
a mulata. As autoras mostram, no entanto, que a imagem da mulata
na música brasileira é bastante ambígua e múltipla,
manifestando-se, por vezes, de maneira afetiva e sensível
e, outras vezes, revelando a exclusão e a discriminação.
Exemplo disso é a música Mulata assanhada,
de Ataulfo Alves:
Ai, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente
Ai, mulata
Se eu pudesse
E se o meu dinheiro desse
Eu te dava sem pensar
Essa terra, esse céu, esse mar
E ela finge que não sabe
Que tem feitiço no olhar
Ai, meu Deus
Que bom seria
Se voltasse a escravidão
Eu pegava a escurinha
Prendia no meu coração
E depois a pretoria
É quem resolvia a questão |
A questão racial na academia
Se o racismo no Brasil ocorre de forma
velada, ele se torna bastante nítido quando se observa a
desigualdade de oportunidades oferecidas a negros e brancos. A
dificuldade de acesso dos negros nas universidades é tema
de três artigos do número 68 da Revista USP e está na
base da defesa do polêmico sistema de cotas (reserva de vagas
para os negros nas universidades). Defendido por movimentos ligados à luta
contra a discriminação racial, o sistema de cotas
costuma ser visto com reservas pelas universidades, por ameaçar
a seleção por mérito. A USP, por exemplo,
ao invés de cotas, instituiu um programa voltado para a
inclusão na universidade de alunos oriundos do ensino público,
o Inclusp (leia texto na página 5).
Os motivos da reação ao sistema de cotas, muitas
vezes “veemente e apaixonada”, é o tema do artigo
de Rita Laura Segato, da Universidade de Brasília (UnB).
Ela cita as razões por que essa proposta causa tanta indignação
em alguns setores e cita os possíveis benefícios
que o sistema poderia trazer às universidades. “Em
primeiro lugar, a falta de informação”, afirma
Rita, citando o primeiro grande motivo da reação às
cotas. Faltaria, para ela, uma discussão ampla sobre igualdade
de acesso a direitos e recursos em geral e mesmo sobre o racismo
no Brasil. A isso ela acrescenta a falta de consciência para
as diversas formas de racismo e a cegueira social em relação
aos males causados por ele. Haveria ainda, segundo ela, o medo,
por grande parte dos professores, de que as cotas coloquem em questão
os processos de seleção por mérito pelos quais
eles passaram para chegar a ocupar as posições que
hoje ocupam.
Em relação aos benefícios do sistema que poderiam
transformar as universidades para melhor, ela explica que ele teria
uma eficácia reparadora, sendo um mecanismo para ressarcir,
pelo menos em parte, as perdas infringidas repetidamente aos indivíduos
negros na nação brasileira. A maior inclusão
de negros na universidade, conseqüência direta da adoção
das cotas, teria ainda um poder transformador na sociedade, diz
a autora. Trata-se, segundo ela, de uma forma de combater o olhar
racista através do qual se costuma ler a sociedade, já que
a cor da pele negra poderia gradualmente passar a ser associada
ao poder, à autoridade e ao prestígio. O sistema de cotas também é defendido pelos professores
Jocélio Teles dos Santos, da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), e Delcele Mascarenhas Queiroz, da Universidade do Estado
da Bahia (Uneb). No artigo, os autores fazem uma análise
do vestibular com cotas, tomando como exemplo a UFBA, que implantou,
em 2005, um sistema de reserva de vagas para alunos do sistema
público de ensino, que utiliza também o critério
racial.
O estudo considera o desempenho nos
vestibulares de 2005, já com
o sistema de cotas implantado, e os dos dois anos anteriores. Os
números mostram que o efeito das cotas na diversidade racial
dos ingressantes é imediato. De 2004 para 2005, o número
de negros a ingressar na UFBA passou de 61,1% para 74,6%. O grande
temor em relação às cotas, entretanto, é a
queda no desempenho dos participantes expressada pelas notas de
corte. Em relação a isso, os autores explicam que,
pelo menos nesse primeiro momento, não houve prejuízo
nenhum, inclusive porque o “ponto continua a ser um medidor
de rendimento no vestibular, o que indica a necessidade de os estudantes
se empenharem nos seus estudos”. Os efeitos das cotas na graduação podem ser apenas
o início de um longo processo de transformação
da realidade acadêmica brasileira, essencialmente branca. É o
que mostra o professor José Jorge de Carvalho, da UnB. Partindo
da ausência de estudantes negros nos cursos de graduação,
o professor passou a investigar a presença de indivíduos
dessa raça na pós-graduação, até chegar à docência,
onde encontrou um quadro ainda mais exacerbado.
Segundo o levantamento, considerando-se
as principais universidades de pesquisa do País (USP, UFRJ, Unicamp, UnB, UFRGS, UFSCAR
e UFMG), existe um contingente de 18.400 docentes, divididos em
99,6% brancos e 0,4% negros. Diante desse quadro de “confinamento
racial” vivido pelos docentes das universidades públicas,
Carvalho aponta para a necessidade de medidas específicas.
Segundo ele, as universidades e as classes docentes têm sido
parte do problema racial brasileiro. “Somente a partir do
momento em que nos enxergarmos
como parte do problema poderemos passar a fazer parte da sua solução.” |
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