
Eu
estava atravessando a Praça Panamericana, quando um carro
interditou o meu Fusca. Dois homens armados me pediram para descer
sem nenhuma explicação e me levaram para um prédio
na avenida Tiradentes, que eu nem me lembro onde era exatamente.
Queria saber a razão de estarem me prendendo. Horas depois,
me disseram que era porque eu estava espionando o palácio
do governo no Morumbi. Fiquei surpreso. Expliquei que nunca tinha
nem entrado nesse lugar. Mesmo assim, fui detido para investigação.
Eles me soltaram só no outro dia e me avisaram que eu estava
sob suspeita.
Naquela tarde de meados da década de 60, o estudante João
Baptista Borges Pereira, que saiu apressado para avisar a família
e buscar o Fusca velho que ficou abandonado na praça, jamais
imaginou que depois de mais de 40 anos estaria contando essa história.
Não sob suspeita. Mas como antropólogo, Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP. E o mais interessante: ficou admirado porque
não se deu conta de que o prédio para onde havia
sido levado pelos agentes do Departamento Estadual de Ordem Política
e Social (Deops) era exatamente o lugar onde estava na manhã do
dia 19 passado, sábado, participando da abertura do seminário
Arquivos da Repressão e da Resistência e integrando
as comemorações de dez anos de pesquisas do Projeto
Integrado Arquivo do Estado/USP (Proin).
Como Borges Pereira, outros suspeitos detidos
e fichados estão
de volta à casa de Lúcifer, como define Maria Luiza
Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da
FFLCH e coordenadora do Proin. Trata-se de uma casa projetada por
Ramos de Azevedo e inaugurada em 1914 para servir de armazém à Companhia
Sorocabana, mas que, durante o regime militar, sediou o Deops,
centro de repressão e tortura política. Agora está restaurada
e transformada na Estação Pinacoteca, que tem como
meta incentivar a arte e a cultura e ser um centro de preservação
da história e memória da antiga instituição.
O seminário Arquivos da Repressão e da Resistência,
promovido pelo Proin, foi apresentado nos dias 19 e 26 de agosto
e continua neste sábado, dia 2, a partir das 10h30, com
a participação do professor Julio Lerner e os testemunhos
de presos políticos como o escritor e jornalista Flávio
Tavares – que ficou conhecido quando sua soltura foi trocada
pela do então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Burke
Elbrick, seqüestrado por amigos de Flávio. Haverá também
o lançamento de diversos livros.
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Sob a curadoria de Boris Kossoy e Maria Luiza
Tucci Carneiro, o Proin está apresentando também a exposição “Vozes
Silenciadas”, com fotos e documentos de pessoas fichadas.
Pela primeira vez, a Estação Pinacoteca apresenta
uma amostragem do arquivo do Deops e conta a história de
homens e mulheres com nomes, ideais e direitos. “Aqui, as
paredes gemem e as portas rangem ao reverem as imagens desses hereges
que um dia aqui estiveram por subverter a ordem em nome de uma
nova ordem”, observa a historiadora Maria Luiza. “Constrangidos,
de frente e perfil, os personagens nos olham, quebrando o silêncio
oficial.” Vozes
silenciadas – São mais de 180 mil prontuários
que, hoje devidamente organizados pelo Proin, contam histórias
de homens e mulheres que, como bem lembra o ex-diretor do Arquivo
do Estado, Nilo Odália, amaram, sofreram, tiveram alegrias
e tristezas, foram livres ou escravos. Pessoas que perdiam a identidade
nas fotos feitas sob as lentes do Serviço de Identificação
do Deops (com iluminação especial e uma postura em
que a cabeça era devidamente apoiada em uma espécie
de aparador de ferro). Ficavam anônimas, sem direito a qualquer
expressão. Através do trabalho desenvolvido por Boris
Kossoy, professor do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP, especialista em fotografia, as fotos passam
a ter uma nova dimensão e, mais importante, as imagens dos
indivíduos saem dos limites de seus prontuários.
Kossoy conseguiu construir, a partir de fragmentos, a imagem da
subversão. “É fundamental que se compreenda
que as fotografias, independentemente de suas categorias de informação,
têm atrás de si uma história e a sua trajetória
deve ser recuperada”, observa. “A lição
de Henri-Irenée Marrou em relação ao documento é fundamental.
Para o autor, o que interessa é o ‘ser’ do documento,
o que ele é em si e por si mesmo.”
 Além da identificação do
cidadão com
suas fotos de frente e perfil, os prontuários trazem também
tudo o que era apreendido junto com o suspeito. Era o chamado material
subversivo. “Durante esse ato de investigação,
o encarregado da busca procurava reunir o maior número possível
de provas, mesmo que estas pudessem, de imediato, nada ter de comprometedor.
As fotografias contidas em álbuns de família ou encontradas
avulsas nos fundos de gavetas, baús e porta-retratos eram
um dos primeiros focos de atenção”, explica
Kossoy. “Estas, num mesmo grau de grandeza, somavam-se aos
livros, panfletos, folhetins, cartões- postais, contas bancárias,
convites para festas, bilhetes de rifas, envelopes selados e endereçados,
armas, cadernetas de endereços, jornais, bilhetes, anotações
isoladas, rabiscos, obras de arte, atas de reuniões.”
São essas provas do crime do cidadão suspeito, devidamente
fotografadas, que estão reunidas na mostra “Vozes
Silenciadas”. “São fragmentos esgarçados
da memória política. Memória perversa que
guarda sussurros, gemidos. Memória até então
intocada, silenciada, guardada a sete chaves, em nome da ordem
e da segurança nacional”, relata Maria Luiza. “Agora,
em outro contexto, respiram o ar da liberdade. Antes, eram indícios
de crime político e agora, cicatrizes da história.”
 Histórias – O Proin é um exemplo positivo
de parceria entre instituições dedicadas à recuperação
da memória e da cultura política brasileira. O seu
propósito em inventariar os documentos do Deops é um
grande incentivo à pesquisa histórica. Com uma proposta
pedagógica, criou a Oficina de História, que vem
formando historiadores em nível de excelência. “Os
graduandos de história vêm participando ativamente
desta pesquisa, que se transformou numa prática pedagógica”,
observa Maria Luiza.
As histórias cadastradas pelo Proin somam-se a muitas outras,
como a de Sedi Hirano, estudante das Ciências Sociais da
USP nos anos 60 e atual pró-reitor de Cultura e Extensão
Universitária da Universidade, que, durante a abertura do
seminrio, também fez questão de contar:
“Agosto de 1961. O presidente Jânio
Quadros tinha acabado de renunciar alegando forças ocultas.
Os estudantes da Faculdade de Filosofia, em defesa da democracia,
saíram às ruas
com os do Mackenzie. Saímos todos de braços dados,
caminhando pela rua Maria Antonia, Consolação, até chegar
na Praça da Sé. Algum tempo depois, recebi um telefonema
de um estudante que se dizia agente do Deops. Marcou um encontro
em frente ao Teatro Municipal, mas se eu não pudesse poderia
ser perto das Indústrias Matarazzo ou então na sua
casa, em Higienópolis. Aí ele me alertou para que
tomasse muito cuidado porque eu estava sob suspeita, sendo investigado
sob a acusação de ser comunista, que tinha um Alfa
Romeo JK novinho. Achei estranho. Tudo bem, tinha sido comunista
na minha adolescência, no curso ginasial, mas aí achei
um partido muito orgânico, muito colado ao Jango, e desisti.
Disse ao sujeito que eu realmente tinha um Alfa Romeo, mas muito
longe de ser novo. Ele me disse: ‘Ah, tem outra suspeita.
Você está sendo
acusado de ser adepto do amor livre’. Só nessa suspeita
o Deops estava certo. Eu era mesmo um adepto do amor livre.”
À história de Sedi Hirano, um adendo de um estudante
de arquitetura do Mackenzie na mesma época: “Olha
só.
Eu também estava naquela passeata, em agosto de 1961”,
lembra-se Boris Kossoy.
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Homenagem ao professor
Nilo Odália
“Mais do que acompanhar a história
deste Estado, o Arquivo a registra e a conserva. Ele é a
sua memória
e nela cabemos todos, pois cada um dos documentos que lá se
encontram fala de homens e mulheres que, como nós, amaram,
sofreram, tiveram alegrias e tristezas, foram livres ou escravos,
transformaram-se em cifras, em relatórios que esperam o
seu historiador para readquirirem sua voz, seus sentimentos, suas
angústias
e possam, finalmente, transfigurar-se em personagens da história
que construíram.”
O pensamento de Nilo Odália, diretor do Arquivo do Estado
na época em que o Proin iniciou suas atividades, há dez
anos, está em uma carta que, hoje, se encontra emoldurada
e pendurada na sala do atual diretor, Fausto Couto Sobrinho. Durante
a abertura do seminário Arquivos da Repressão e da
Resistência, o historiador Lauro Ávila lembrou o recado
que o mestre deixou para os seus sucessores:
“Há, porém, uma outra história,
a que está implícita no rendilhado de seus documentos,
nos mosaicos sinuosos e belos que a fome e a fantasia dos minúsculos
roedores de papel constroem, roubando, pela incúria dos
administradores, a possibilidade de virem a ser ouvidas e interpretadas
aquelas vozes, aqueles sentimentos, aquelas angústias. É a
história
da desídia e do desinteresse administrativos. O que essa
documentação
nos traz, porém, é muito mais, pois ela pode ser
a prova de que necessita o magistrado para fazer justiça,
o advogado para defender os que se sentem desamparados, a informação
de que precisa o engenheiro para conhecer um subsolo tão
revolvido e, até mesmo, para não ficarmos apenas
nas coisas boas e honestas, o grileiro que busca terras sem donos.
Por isso, os arquivos do mundo inteiro são e serão
sempre uma entidade democrática.
Eles abrem suas portas para que conheçamos a nós
mesmos. Hoje, sou o diretor do Arquivo do Estado de São
Paulo. Amanhã,
não mais o serei e é por isso mesmo que escrevo esta
carta a você, paulista, meu futuro sucessor.”
Nilo Odália gostava de futebol. Era palmeirense
fanático
e um grande jogador de sinuca. “Poderia falar muito sobre
a sua produção intelectual. Escreveu livros sobre
Varnhagen, Oliveira Vianna, Georges Duby, tem muitos escritos sobre
filosofia e filosofia da história. O seu livro sobre a violência é intensamente
utilizado e está na sexta edição”, diz Ávila. “Ele
começou fazendo Economia, mas formou-se em Filosofia pela
USP, foi professor em Assis no curso de História por 12
anos, onde fez seu doutorado, na antiga FFCL, depois Unesp. Fez
a livre-docência
no Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação
de Araraquara, também da Unesp, onde foi professor titular
e diretor.”
Na universidade, Odália teve uma participação
ativa na luta contra a ditadura. Foi presidente da Associação
de Docentes da Unesp (Adunesp), que ajudou a criar integrando as
greves de 1979 e 1982. Sugeriu, em 1980, a criação
de uma associação nacional que congregasse as diversas
associações de docentes, a atual Andes. “A
compreensão
que o professor Nilo teve da vocação do Arquivo para
fomentar a pesquisa resultou no apoio à iniciativa da professora
Maria Luiza Tucci Carneiro em instituir o Projeto Integrado Arquivo
do Estado/USP, que está completando dez anos de existência”,
observa Ávila. “Sua passagem pelo Arquivo do Estado
deixou marcas indeléveis na memória da instituição.
A sede em Santana e o apoio ao Proin são apenas algumas
delas. Foi um grande humanista, permanentemente preocupado com
a memória
e a produção do conhecimento.”
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