Xilogravuras de Renina em exposição: obras de juventude
Rostos magros, olhares sem esperança, corpos cansados,
desnudos. Assim são as pessoas retratadas na série
de xilogravuras Retirantes, que a artista plástica Renina
Katz expõe até 9 de outubro no Museu Casa da Xilogravura,
em Campos do Jordão. Datadas de 1953 e 1954, as obras são
uma parcela rara da produção artística de
Renina, que depois delas não voltou mais a fazer xilogravuras. “Obras
de juventude”, como a artista define, retratam o drama dos
nordestinos atingidos pela seca, que chegavam a São Paulo
e enfrentavam duras condições de vida. “As
gravuras são de uma fase juvenil, cheia de indignação
com os temas retratados nelas, como a pobreza e a má distribuição
de renda”, destaca Renina, justificando que pertence à geração
do pós-guerra, “cheia de ideais libertários,
de querer melhorar tudo”.
Ela lembra que, ao fazer as imagens, tinha em mente a multidão
de retirantes que, no auge da migração nordestina
para São Paulo – em meados do século 20 –,
chegavam à cidade pensando em melhorar de vida. “Era
tudo uma ilusão, eles eram totalmente desprotegidos.” Diante
dessa situação, misturavam-se em Renina sentimentos
de solidariedade e de culpa. “Eu me sentia culpada porque
olhava para aquilo mas não estava vivendo o que eles viviam.”
A indignação de Renina se transformou em arte duradoura.
As oito xilogravuras que compõem a mostra – intitulada
“Renina Katz em seus primórdios” – são
exemplos do que a artista chama de “realismo social”.
“Empregam linguagem realista de vigorosos contrastes, apropriada
à sua temática de sentimento fortemente social”,
afirma o texto que apresenta a exposição. “Só
anos mais tarde o estilo de Renina rumaria em direção
ao abstracionismo.”
Para compor sua obra, Renina optou pela técnica da xilografia
de topo – aquela em que o xilógrafo entalha num disco
ou taco de madeira obtido com o corte transversal da árvore
(leia texto na página ao lado). “Achei que essa técnica
iria permitir umas filigranas, uns claros e escuros, umas luzes
intermediárias que a xilogravura ao fio não dá.”
Depois de fazer Retirantes, Renina abandonou a técnica.
“Resolvi fazer uma revisão. Achei que talvez ficasse
limitada aos temas da série”, diz. Passou a se dedicar
à pintura a óleo e acrílico, à litografia
e à gravura em metal. “Além da aquarela, porque
gosto muito do papel.”
Costella: coragem para fazer um museu exclusivo para a xilogravura
Renina elogia a iniciativa do Museu Casa da Xilogravura – “muito
rara no Brasil hoje” – de promover uma exposição
só sobre xilogravura. Também elogia o professor Antonio
Costella, criador do museu, em 1987, por ter a “coragem” de
fundar uma instituição exclusivamente dedicada a
essa técnica. O museu conta com cerca de 250 xilogravuras
de artistas brasileiros e estrangeiros, além de outras 2
mil obras que Costella mantém na reserva técnica
(leia mais sobre o acervo do museu no texto abaixo).
Renina Katz nasceu em 1925, no Rio de Janeiro. Formada pela Escola
Nacional de Belas Artes e pelo Liceu de Artes e Ofícios,
também no Rio, tem uma vasta produção como
gravurista, que inclui calcogravuras, litografias e serigrafias.
Professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU)
da USP, já realizou mostras individuais e coletivas no Brasil
e em vários países, como Estados Unidos, Itália,
Alemanha, Holanda e Israel.
A exposição “Renina Katz em seus primórdios” fica
em cartaz até 9 de outubro no Museu Casa da Xilogravura
(avenida Eduardo Moreira da Cruz, 295), em Campos do Jordão.
Mais informações podem ser obtidas pelo telefone
(12) 3662-1832. |
Os muitos usos da xilogravura
A obra de Yan Tchau, a preferida de Costella: “Se existe o
Paraíso e eu puder levar uma xilogravura, será esta”
Os muitos usos que o ser humano fez da xilogravura ao longo da história
são mostrados no Museu Casa da Xilogravura, em Campos do Jordão.
Através do seu acervo, o visitante percebe que, além
da beleza estética com que os artistas souberam revestir essa
técnica, ela se prestou a funções mais utilitárias – com
não menos brilho talvez.
Uma dessas funções foi a ilustração
de jornais, livros e revistas. Até o fim do século
19, antes do advento dos clichês metálicos, praticamente
todas as imagens publicadas na imprensa eram produzidas por xilógrafos.
“Se um editor tinha que publicar a notícia do afundamento
de um navio, por exemplo, ele pedia a um xilógrafo, que imaginava
a cena e fazia o desenho”, explica o professor Antonio Costella,
fundador e diretor da Casa da Xilogravura. Na sala do museu dedicada
à “xilogravura utilitária”, há
exemplos disso: para ilustrar matéria sobre o Dia das Mães,
o jornal A Cidade de Campos do Jordão, de 10 de maio de 1953,
publicou na primeira página uma grande xilogravura de uma
mãe com seu filho, feita pelo dono do jornal, Joaquim Corrêa
Cintra. “Na época, era a forma mais fácil e
barata de ilustrar o jornal”, diz Costella.
Obra de Hiroshige Rissae, exemplo da escola Ukyio-e: admirada pelos
impressionistas europeus
A sala mostra também um livro de Costella impresso inteiramente
através da xilografia – algo que só fora feito
no século 15, na Europa, quando se produziu o Donato, a gramática
latina de Élio Donato. Trata-se de Xilopoemas, editado em
1982, com 13 pranchas, em que texto e ilustrações,
saídos da matriz em madeira, exemplificam outro uso “utilitário” da
técnica. O livro teve tiragem de cem exemplares e se encontra
hoje em museus e bibliotecas – entre elas a Biblioteca Nacional
de Paris. Cartas de tarô, figuras sacras (os “santinhos”),
calendários e um ex-libris minuciosamente trabalhado também
testemunham as várias formas como a xilogravura foi utilizada
ao longo do tempo. E isso ocorre até hoje: em outro espaço
do museu, o visitante se depara com três garrafas de vinho
Oracle, da vinícola Linley Schultz, da África do Sul,
safra de 2002, cujo rótulo foi composto originalmente em xilogravura. A escola de Kohler – Com o desenvolvimento do clichê metálico,
no final do século 19, a xilogravura deixou de ser usada por
editores de jornais e livros. Foi adotada pelos artistas, que, no
Brasil, a elevaram a um alto grau de sofisticação. É o
que mostram as obras expostas nas salas do museu dedicadas à xilogravura
brasileira. Ali se vêem desenhos de Oswaldo Goeldi, Lasar Segall,
Marcelo Grassmann, Antonio Henrique Amaral, Tarsila do Amaral, Livio
Abramo, Aldemir Martins, Aldo Bonadei, Itajahy Martins e Maria Bonomi,
entre vários outros.
Uma das obras de Livio Abramo (1903-1992) parece confirmar a tese
de Costella apresentada em Xilografia na Escola do Horto –
Adolf Kohler e seus discípulos. Nesse livro, o professor
reconstitui a história da Escola de Xilografia do Horto de
São Paulo, que de 1940 a 1950 foi dirigida pelo alemão
Adolf Kohler. Nascido em Stuttgart em 1882, Kohler se formou segundo
a orientação didática da xilografia da ilustração
européia do século 19 – aquela que valoriza
a minudência, os detalhes, a precisão do corte, a fidelidade
ao desenho veraz. Por volta de 1940, conheceu Livio Abramo, com
quem conviveu pelos dez anos seguintes. Embora o artista não
tenha reconhecido a influência do xilógrafo alemão,
ela está presente na sua arte, sustenta Costella, comparando
gravuras de Livio feitas antes e depois do contato com Kohler. “As
obras de Livio anteriores a Kohler valem-se da técnica de
xilografia ao fio, trabalhada em tábuas, com linguagem assentada
em áreas amplas de preto e branco, contrastantes”,
observa o professor. Já as gravuras feitas depois de 1947
são obras de valorização da linha branca, fina,
inventiva, com riqueza de traços e de pontos. “Está
óbvio: essa linguagem é a enriquecida pela técnica
aprendida com Kohler.” É esse “segundo Livio”
que se pode ver exposto na Casa da Xilogravura.
Uma imagem de Tarsila do Amaral |
Há verdadeiras obras-primas da xilogravura brasileira ali.
Por exemplo, uma pequena obra de Tarsila do Amaral (1886-1973).
Nela, a artista reproduz a vivacidade de crianças a brincar,
ao lado de árvores e casas, transmitindo um alegre e agitado
cotidiano. A delicadeza da xilogravura parece realçada pelo
fato de ter sido impressa a seco – ou seja, sem tinta –,
ao contrário da maioria das gravuras expostas no museu, que
são coloridas ou exploram o contraste entre o preto e o branco.
“O Brasil é um dos países mais ricos em xilogravuras”,
afirma Costella, explicando a grande variedade e a qualidade da
produção dos xilógrafos brasileiros.
Essa riqueza é tão grande que a xilogravura surge nas
ruas. É o que ocorre com a literatura de cordel do Nordeste
brasileiro, tradicionalmente ilustrada com imagens obtidas com a
técnica. Em seu museu, Costella mantém um espaço
cenográfico em que reproduz o interior de uma casa sertaneja,
além de expor um boneco em tamanho natural de um cantador
de cordel e sua viola. Com isso, ele quer enfatizar a forte relação
entre aquela cultura e a xilogravura. “Dessa produção
espontânea surgiram grandes artistas”, destaca Costella,
citando como exemplos Stênio Diniz, de Juazeiro do Norte, e
Walderedo Gonçalves, de Crato, ambos do Ceará, que
têm obras expostas na Casa da Xilogravura.
Exemplo do uso da xilogravura na imprensa |
Embrulhos – Em outros países, a xilogravura
floresceu tanto quanto no Brasil, como mostra a sala de obras estrangeiras
do museu. Estão ali raros exemplares da chamada escola Ukyio-e,
que ficou em atividade entre os séculos 17 e 19 na então
cidade de Edo, hoje Tóquio. Inicialmente desprezada pela
nobreza japonesa – que preferia ver em seus museus a idealizada
arte de influência chinesa –, as xilogravuras de Ukyio-e
eram adquiridas por comerciantes e gente do povo. Eram produzidas
em tal quantidade que acabavam servindo para embrulhar as porcelanas
exportadas para a Europa.
Acontece que elas tinham uma cor que fascinou os impressionistas,
esses artistas obcecados pela luz e os tons que ela produz nos objetos.
Resultado: os europeus passaram a importar do Japão aqueles
papéis coloridos que embrulhavam as porcelanas, para mostrar
em seus museus. Em 1938, o imperador do Japão enviou um de
seus nobres a Londres para arrematar em leilão 8 mil xilogravuras
de Ukyio-e, a fim de preservar a arte antes desprezada. “São
obras muito coloridas, com tinta à base de água”,
explica Costella. “Algumas foram feitas com até 20
matrizes.”
É essa cor reverenciada pelos impressionistas que se vê
na xilogravura de Hiroshige Rissae – genro de Hiroshige Ando
(1797-1858), um dos maiores expoentes de Ukyio-e – exposta
no museu. A obra mostra uma ponte repleta de pessoas, com barcos
navegando pelo rio, numa paisagem dominada pelo monte Fuji. As cores
e a luminosidade impressionam o olhar. Ao lado da gravura de Rissae
está instalada a mais antiga obra do Museu Casa da Xilogravura,
também da escola de Ukyio-e: uma xilogravura de Utagawa Kunisada
(1786-1864). “Comprei barato na feirinha do Masp”, revela
Costella, referindo-se à feira de arte realizada no vão
do Museu de Arte de São Paulo aos domingos. “O marchand
não sabia o que estava vendendo.”
Ilustração do século 16: a Europa conheceu
o Brasil através da xilogravura
Ainda na sala das obras estrangeiras, há reproduções
das xilogravuras que ilustraram os livros dos primeiros viajantes
europeus no Brasil, como Hans Staden e Jean de Léry, no século
16. “O conhecimento do Brasil pelos europeus se deu em grande
parte baseado nas imagens feitas por xilografia”, nota Costella,
apontando para uma ilustração reproduzida do livro
de Léry, História de uma viagem feita na terra do
Brasil, também chamada América, de 1578. Ela mostra
vários aspectos da vida dos índios brasileiros da
época: a batalha entre tribos inimigas, a rede de dormir
– então desconhecida na Europa –, a domesticação
de macacos e a antropofagia. Outros países estão representados
na sala. Há obras dos Estados Unidos, Itália, Hungria,
China, Inglaterra, França, Hungria, Tailândia e Sudão,
entre várias outras. Uma delas é a preferida do diretor
do Museu Casa da Xilogravura. “Se existe o Paraíso
e eu puder levar uma xilogravura, será esta”, diz Costella,
apontando para a obra do chinês Yan Tchau.
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Técnicas de uma arte encantadora
De uma técnica simples e rústica, o artista faz uma
obra encantadora. Assim é a xilogravura, termo que se refere à gravura
feita com uma matriz de madeira (xylos, em grego). Nela, o artista
entalha – com instrumentos como o formão, a goiva e
o buril – o desenho ou texto que deseja imprimir no papel.
Depois, ele passa tinta nas partes em relevo da matriz, não
entalhadas. Em seguida, com uma prensa de rosca ou de cilindros,
prensa a matriz contra o papel, transferindo para ele a tinta da
madeira. Está feita uma xilogravura, que é reproduzida às
dezenas ou centenas e assinada pelo artista.
Como ensina o professor Antonio Costella – autor de vários
livros sobre o tema –, a xilogravura pode ser ao fio ou de
topo. “Na xilografia ao fio, o xilógrafo lança
mão de um pedaço de madeira cujo corte se fez na
mesma direção em que estão dispostas as fibras
da árvore,
isto é, o corte se fez da copa à raiz”, escreve
Costella no livro Introdução à gravura e à sua
história, lançado em julho passado pela Editora Mantiqueira. “Na
xilografia de topo, o xilógrafo faz a matriz entalhando
a superfície de um disco de madeira obtido com o corte transversal
da árvore.”
A escolha de um desses dois tipos depende do resultado que o artista
quer obter, diz Costella. Na xilogravura ao fio, as fibras da árvore
interferem no trabalho, deixando marcas. Na de topo, o artista
pode fazer traços finos e detalhados, porque as fibras não
aparecem. “Tudo depende do resultado que se busca. Picasso,
por exemplo, trabalhou ao fio em uma tábua de caixa de cebolas,
e sem lixá-la, para que as marcas do uso e das vicissitudes
enfrentadas pela caixa participassem de sua obra.”
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