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fotos: francisco emolo
Xilogravuras de Renina em exposição: obras de juventude

Rostos magros, olhares sem esperança, corpos cansados, desnudos. Assim são as pessoas retratadas na série de xilogravuras Retirantes, que a artista plástica Renina Katz expõe até 9 de outubro no Museu Casa da Xilogravura, em Campos do Jordão. Datadas de 1953 e 1954, as obras são uma parcela rara da produção artística de Renina, que depois delas não voltou mais a fazer xilogravuras. “Obras de juventude”, como a artista define, retratam o drama dos nordestinos atingidos pela seca, que chegavam a São Paulo e enfrentavam duras condições de vida. “As gravuras são de uma fase juvenil, cheia de indignação com os temas retratados nelas, como a pobreza e a má distribuição de renda”, destaca Renina, justificando que pertence à geração do pós-guerra, “cheia de ideais libertários, de querer melhorar tudo”.

Ela lembra que, ao fazer as imagens, tinha em mente a multidão de retirantes que, no auge da migração nordestina para São Paulo – em meados do século 20 –, chegavam à cidade pensando em melhorar de vida. “Era tudo uma ilusão, eles eram totalmente desprotegidos.” Diante dessa situação, misturavam-se em Renina sentimentos de solidariedade e de culpa. “Eu me sentia culpada porque olhava para aquilo mas não estava vivendo o que eles viviam.”

A indignação de Renina se transformou em arte duradoura. As oito xilogravuras que compõem a mostra – intitulada “Renina Katz em seus primórdios” – são exemplos do que a artista chama de “realismo social”. “Empregam linguagem realista de vigorosos contrastes, apropriada à sua temática de sentimento fortemente social”, afirma o texto que apresenta a exposição. “Só anos mais tarde o estilo de Renina rumaria em direção ao abstracionismo.”

Para compor sua obra, Renina optou pela técnica da xilografia de topo – aquela em que o xilógrafo entalha num disco ou taco de madeira obtido com o corte transversal da árvore (leia texto na página ao lado). “Achei que essa técnica iria permitir umas filigranas, uns claros e escuros, umas luzes intermediárias que a xilogravura ao fio não dá.”

Depois de fazer Retirantes, Renina abandonou a técnica. “Resolvi fazer uma revisão. Achei que talvez ficasse limitada aos temas da série”, diz. Passou a se dedicar à pintura a óleo e acrílico, à litografia e à gravura em metal. “Além da aquarela, porque gosto muito do papel.”

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Costella: coragem para fazer um museu exclusivo para a xilogravura

Renina elogia a iniciativa do Museu Casa da Xilogravura – “muito rara no Brasil hoje” – de promover uma exposição só sobre xilogravura. Também elogia o professor Antonio Costella, criador do museu, em 1987, por ter a “coragem” de fundar uma instituição exclusivamente dedicada a essa técnica. O museu conta com cerca de 250 xilogravuras de artistas brasileiros e estrangeiros, além de outras 2 mil obras que Costella mantém na reserva técnica (leia mais sobre o acervo do museu no texto abaixo).

Renina Katz nasceu em 1925, no Rio de Janeiro. Formada pela Escola Nacional de Belas Artes e pelo Liceu de Artes e Ofícios, também no Rio, tem uma vasta produção como gravurista, que inclui calcogravuras, litografias e serigrafias. Professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, já realizou mostras individuais e coletivas no Brasil e em vários países, como Estados Unidos, Itália, Alemanha, Holanda e Israel.

A exposição “Renina Katz em seus primórdios” fica em cartaz até 9 de outubro no Museu Casa da Xilogravura (avenida Eduardo Moreira da Cruz, 295), em Campos do Jordão. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (12) 3662-1832.


Os muitos usos da xilogravura

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A obra de Yan Tchau, a preferida de Costella: “Se existe o Paraíso e eu puder levar uma xilogravura, será esta”

Os muitos usos que o ser humano fez da xilogravura ao longo da história são mostrados no Museu Casa da Xilogravura, em Campos do Jordão. Através do seu acervo, o visitante percebe que, além da beleza estética com que os artistas souberam revestir essa técnica, ela se prestou a funções mais utilitárias – com não menos brilho talvez.

Uma dessas funções foi a ilustração de jornais, livros e revistas. Até o fim do século 19, antes do advento dos clichês metálicos, praticamente todas as imagens publicadas na imprensa eram produzidas por xilógrafos. “Se um editor tinha que publicar a notícia do afundamento de um navio, por exemplo, ele pedia a um xilógrafo, que imaginava a cena e fazia o desenho”, explica o professor Antonio Costella, fundador e diretor da Casa da Xilogravura. Na sala do museu dedicada à “xilogravura utilitária”, há exemplos disso: para ilustrar matéria sobre o Dia das Mães, o jornal A Cidade de Campos do Jordão, de 10 de maio de 1953, publicou na primeira página uma grande xilogravura de uma mãe com seu filho, feita pelo dono do jornal, Joaquim Corrêa Cintra. “Na época, era a forma mais fácil e barata de ilustrar o jornal”, diz Costella.

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Obra de Hiroshige Rissae, exemplo da escola Ukyio-e: admirada pelos impressionistas europeus

A sala mostra também um livro de Costella impresso inteiramente através da xilografia – algo que só fora feito no século 15, na Europa, quando se produziu o Donato, a gramática latina de Élio Donato. Trata-se de Xilopoemas, editado em 1982, com 13 pranchas, em que texto e ilustrações, saídos da matriz em madeira, exemplificam outro uso “utilitário” da técnica. O livro teve tiragem de cem exemplares e se encontra hoje em museus e bibliotecas – entre elas a Biblioteca Nacional de Paris. Cartas de tarô, figuras sacras (os “santinhos”), calendários e um ex-libris minuciosamente trabalhado também testemunham as várias formas como a xilogravura foi utilizada ao longo do tempo. E isso ocorre até hoje: em outro espaço do museu, o visitante se depara com três garrafas de vinho Oracle, da vinícola Linley Schultz, da África do Sul, safra de 2002, cujo rótulo foi composto originalmente em xilogravura.

A escola de Kohler – Com o desenvolvimento do clichê metálico, no final do século 19, a xilogravura deixou de ser usada por editores de jornais e livros. Foi adotada pelos artistas, que, no Brasil, a elevaram a um alto grau de sofisticação. É o que mostram as obras expostas nas salas do museu dedicadas à xilogravura brasileira. Ali se vêem desenhos de Oswaldo Goeldi, Lasar Segall, Marcelo Grassmann, Antonio Henrique Amaral, Tarsila do Amaral, Livio Abramo, Aldemir Martins, Aldo Bonadei, Itajahy Martins e Maria Bonomi, entre vários outros.

Uma das obras de Livio Abramo (1903-1992) parece confirmar a tese de Costella apresentada em Xilografia na Escola do Horto – Adolf Kohler e seus discípulos. Nesse livro, o professor reconstitui a história da Escola de Xilografia do Horto de São Paulo, que de 1940 a 1950 foi dirigida pelo alemão Adolf Kohler. Nascido em Stuttgart em 1882, Kohler se formou segundo a orientação didática da xilografia da ilustração européia do século 19 – aquela que valoriza a minudência, os detalhes, a precisão do corte, a fidelidade ao desenho veraz. Por volta de 1940, conheceu Livio Abramo, com quem conviveu pelos dez anos seguintes. Embora o artista não tenha reconhecido a influência do xilógrafo alemão, ela está presente na sua arte, sustenta Costella, comparando gravuras de Livio feitas antes e depois do contato com Kohler. “As obras de Livio anteriores a Kohler valem-se da técnica de xilografia ao fio, trabalhada em tábuas, com linguagem assentada em áreas amplas de preto e branco, contrastantes”, observa o professor. Já as gravuras feitas depois de 1947 são obras de valorização da linha branca, fina, inventiva, com riqueza de traços e de pontos. “Está óbvio: essa linguagem é a enriquecida pela técnica aprendida com Kohler.” É esse “segundo Livio” que se pode ver exposto na Casa da Xilogravura.

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Uma imagem de Tarsila do Amaral

Há verdadeiras obras-primas da xilogravura brasileira ali. Por exemplo, uma pequena obra de Tarsila do Amaral (1886-1973). Nela, a artista reproduz a vivacidade de crianças a brincar, ao lado de árvores e casas, transmitindo um alegre e agitado cotidiano. A delicadeza da xilogravura parece realçada pelo fato de ter sido impressa a seco – ou seja, sem tinta –, ao contrário da maioria das gravuras expostas no museu, que são coloridas ou exploram o contraste entre o preto e o branco. “O Brasil é um dos países mais ricos em xilogravuras”, afirma Costella, explicando a grande variedade e a qualidade da produção dos xilógrafos brasileiros.

Essa riqueza é tão grande que a xilogravura surge nas ruas. É o que ocorre com a literatura de cordel do Nordeste brasileiro, tradicionalmente ilustrada com imagens obtidas com a técnica. Em seu museu, Costella mantém um espaço cenográfico em que reproduz o interior de uma casa sertaneja, além de expor um boneco em tamanho natural de um cantador de cordel e sua viola. Com isso, ele quer enfatizar a forte relação entre aquela cultura e a xilogravura. “Dessa produção espontânea surgiram grandes artistas”, destaca Costella, citando como exemplos Stênio Diniz, de Juazeiro do Norte, e Walderedo Gonçalves, de Crato, ambos do Ceará, que têm obras expostas na Casa da Xilogravura.

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Exemplo do uso da xilogravura na imprensa

Embrulhos – Em outros países, a xilogravura floresceu tanto quanto no Brasil, como mostra a sala de obras estrangeiras do museu. Estão ali raros exemplares da chamada escola Ukyio-e, que ficou em atividade entre os séculos 17 e 19 na então cidade de Edo, hoje Tóquio. Inicialmente desprezada pela nobreza japonesa – que preferia ver em seus museus a idealizada arte de influência chinesa –, as xilogravuras de Ukyio-e eram adquiridas por comerciantes e gente do povo. Eram produzidas em tal quantidade que acabavam servindo para embrulhar as porcelanas exportadas para a Europa.

Acontece que elas tinham uma cor que fascinou os impressionistas, esses artistas obcecados pela luz e os tons que ela produz nos objetos. Resultado: os europeus passaram a importar do Japão aqueles papéis coloridos que embrulhavam as porcelanas, para mostrar em seus museus. Em 1938, o imperador do Japão enviou um de seus nobres a Londres para arrematar em leilão 8 mil xilogravuras de Ukyio-e, a fim de preservar a arte antes desprezada. “São obras muito coloridas, com tinta à base de água”, explica Costella. “Algumas foram feitas com até 20 matrizes.”

É essa cor reverenciada pelos impressionistas que se vê na xilogravura de Hiroshige Rissae – genro de Hiroshige Ando (1797-1858), um dos maiores expoentes de Ukyio-e – exposta no museu. A obra mostra uma ponte repleta de pessoas, com barcos navegando pelo rio, numa paisagem dominada pelo monte Fuji. As cores e a luminosidade impressionam o olhar. Ao lado da gravura de Rissae está instalada a mais antiga obra do Museu Casa da Xilogravura, também da escola de Ukyio-e: uma xilogravura de Utagawa Kunisada (1786-1864). “Comprei barato na feirinha do Masp”, revela Costella, referindo-se à feira de arte realizada no vão do Museu de Arte de São Paulo aos domingos. “O marchand não sabia o que estava vendendo.”

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Ilustração do século 16: a Europa conheceu o Brasil através da xilogravura

Ainda na sala das obras estrangeiras, há reproduções das xilogravuras que ilustraram os livros dos primeiros viajantes europeus no Brasil, como Hans Staden e Jean de Léry, no século 16. “O conhecimento do Brasil pelos europeus se deu em grande parte baseado nas imagens feitas por xilografia”, nota Costella, apontando para uma ilustração reproduzida do livro de Léry, História de uma viagem feita na terra do Brasil, também chamada América, de 1578. Ela mostra vários aspectos da vida dos índios brasileiros da época: a batalha entre tribos inimigas, a rede de dormir – então desconhecida na Europa –, a domesticação de macacos e a antropofagia. Outros países estão representados na sala. Há obras dos Estados Unidos, Itália, Hungria, China, Inglaterra, França, Hungria, Tailândia e Sudão, entre várias outras. Uma delas é a preferida do diretor do Museu Casa da Xilogravura. “Se existe o Paraíso e eu puder levar uma xilogravura, será esta”, diz Costella, apontando para a obra do chinês Yan Tchau.


Chiquinho, o fiel companheiro

Fundado em 1987 pelo professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Antonio Costella, o Museu Casa da Xilogravura será transferido para a USP após a morte do fundador. Segundo seu testamento, o professor legará à Universidade todo o acervo e a casa onde está instalada a instituição, em Campos do Jordão. Há uma condição, porém: a USP jamais poderá tocar no túmulo do cachorro Chiquinho – fiel companheiro de Costella durante mais de 14 anos –, que fica no jardim principal do museu. Se isso acontecer, o museu passará a pertencer à Universidade de Taubaté (Unitau).


Técnicas de uma arte encantadora

De uma técnica simples e rústica, o artista faz uma obra encantadora. Assim é a xilogravura, termo que se refere à gravura feita com uma matriz de madeira (xylos, em grego). Nela, o artista entalha – com instrumentos como o formão, a goiva e o buril – o desenho ou texto que deseja imprimir no papel. Depois, ele passa tinta nas partes em relevo da matriz, não entalhadas. Em seguida, com uma prensa de rosca ou de cilindros, prensa a matriz contra o papel, transferindo para ele a tinta da madeira. Está feita uma xilogravura, que é reproduzida às dezenas ou centenas e assinada pelo artista.

Como ensina o professor Antonio Costella – autor de vários livros sobre o tema –, a xilogravura pode ser ao fio ou de topo. “Na xilografia ao fio, o xilógrafo lança mão de um pedaço de madeira cujo corte se fez na mesma direção em que estão dispostas as fibras da árvore, isto é, o corte se fez da copa à raiz”, escreve Costella no livro Introdução à gravura e à sua história, lançado em julho passado pela Editora Mantiqueira. “Na xilografia de topo, o xilógrafo faz a matriz entalhando a superfície de um disco de madeira obtido com o corte transversal da árvore.”

A escolha de um desses dois tipos depende do resultado que o artista quer obter, diz Costella. Na xilogravura ao fio, as fibras da árvore interferem no trabalho, deixando marcas. Na de topo, o artista pode fazer traços finos e detalhados, porque as fibras não aparecem. “Tudo depende do resultado que se busca. Picasso, por exemplo, trabalhou ao fio em uma tábua de caixa de cebolas, e sem lixá-la, para que as marcas do uso e das vicissitudes enfrentadas pela caixa participassem de sua obra.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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