Emigrar
faz parte da constituição
do ser humano. Não é um fato novo na história
da humanidade: os egípcios recebiam mão-de-obra para
suas construções faraônicas, gregos e romanos
trasladavam suas populações para ocupar territórios
recém-conquistados. Entretanto, diferentes lógicas
orientam as movimentações humanas, variando de acordo
com a época e os locais em que ocorrem.
Desde 2002, o Grupo de Pesquisa, Ensino
e Extensão Acolhendo
Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar:
o Papel da Instituição Escolar, localizado na Faculdade
de Educação da USP, tem desenvolvido seus trabalhos
acerca da relação entre escola e (i)emigração.
Dentre outras perspectivas, temos nos interessado pela saída
de brasileiros graduados ou pós-graduados para o exterior,
movimento conhecido também como brain drain (fuga de cérebros).
Como conseqüência do movimento de europeus para os Estados
Unidos, podemos admitir que outros cientistas, brasileiros inclusive,
partem rumo à Europa para preencher as vagas ali encontradas,
apesar de que indianos e paquistaneses, dentre outros pesquisadores
de antigas colônias não-pertencentes ao mundo lusófono,
são priorizados sobretudo pelo domínio da língua
inglesa. Essa situação que desfavorece a ocupação
dessas vagas por brasileiros na Europa, do nosso ponto de vista, é o
resultado, em grande medida, da dificuldade que a maioria dos países
ex-colônias portuguesas tem em competir no sistema econômico
mundial há muitos séculos.
Dito de outro modo, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau,
São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor-Leste
teriam, de um ponto de vista eurocêntrico, poucos cérebros
para exportar. Isso porque o resultado do processo colonial português – apoiado
fortemente pela Inglaterra, principal beneficiária desses
pactos coloniais – fez com que suas economias se apoiassem
na exportação de produtos agrícolas. E assim
os nossos países irmãos, como o próprio Brasil,
sem exceção, têm produzido bens primários.
E, para conseguir importar bens de outros setores, têm recorrido
a empréstimos de fundos internacionais que não permitem
o seu desenvolvimento de fato. Praticamente inexiste, nesses países,
o investimento na escolarização da sua população.
Ou seja, há escassez de mão-de-obra qualificada.
Mesmo assim, apesar das adversidades históricas, de acordo
com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes), 10 mil doutores foram formados
em 2006. Entretanto, boa parte deles poderá ficar desempregada.
Vejamos parte de reportagem de janeiro de 2007 do Jornal da Ciência: “O
Brasil tem mais doutores, mas não há empregos. No
ensino superior, doutor é o que menos tem vaga no quadro
docente. No momento em que a Capes anuncia que o Brasil atingiu
a meta de formar 10 mil doutores ao ano em 2006, muitos titulados
buscam espaço no mercado. Especialistas afirmam que nossa
produção científica (1,8% do total mundial)
precisaria dobrar para alcançar a média de países
como Canadá e Itália, que, em 2005, detinham, respectivamente,
4,8% e 4,4%, segundo a Fapesp (no topo, os Estados Unidos, com
32%).
Infelizmente, sabemos que essa cruel realidade
para os vencedores que conseguem obter o título de doutor no Brasil é apoiada
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
de 1996 (LDB 9394/96), que explicita no seu artigo 52 a não
exigência da presença de doutores trabalhando em cursos
de graduação certificados pelo Ministério
da Educação. As instituições superiores
podem optar por mestres ou doutores. Estes são preteridos
tendo em vista os menores valores de hora-aula pagos aos menos
graduados.
Nesse sentido, vejamos as afirmações feitas pelo
professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp
Roberto Romano, em entrevista concedida à Folha de S. Paulo
em julho de 2003, acerca da reforma previdenciária pela
qual passa o Brasil: “A expulsão de cérebros
do País não se resume apenas à reforma da
Previdência em si, mas é reforçada pelos ‘ataques’ do
presidente Lula à universidade, ao criticar professores
que se aposentam aos 55 anos de idade. Pessoas tratadas como criminosas
no seu país de origem e que recebem um salário quase
de fome, que são estimuladas a trocar o Brasil pelas universidades
norte-americanas ou européias, formam um exército
intelectual de reserva. E temos uma política de terra arrasada”.
Interessados nesse debate apresentam propostas
para que essa fuga de cérebros não ocorra no Brasil. Nesse conjunto,
podemos destacar a criação de mecanismos pelo governo
de modo que empresas privadas financiem a pesquisa, cujos resultados
beneficiarão diretamente as mesmas e ainda o aumento das
verbas governamentais.
Apesar disso, observemos os seguintes
dados, que podem ser obtidos facilmente em diversas páginas da internet sobre o assunto.
A bolsa anual de um pesquisador em nível de mestrado (com
recursos da própria universidade ou privados), nos Estados
Unidos, fica, em média, em torno de R$ 100 mil por ano (aproximadamente
R$ 10 mil por mês), além de o aluno receber ainda
uma quantia extra para cobrir os custos da anuidade do curso e,
na maior parte dos casos, também do alojamento universitário.
No Brasil, a bolsa anual de pesquisador no mesmo nível é de
cerca de R$ 9.600 anuais, ou seja, R$ 800 por mês, sem nenhum
outro benefício, sendo que, se esse mestrando estudar em
alguma instituição particular de ensino, terá que
pagar mensalidades do curso não inferiores a R$ 500. Numa
matemática muito elementar, concluímos que: o que
o mestrando brasileiro recebe no ano, o mestrando nos Estados Unidos
recebe no mês, e o que o mestrando nos Estados Unidos ganha
por mês não é salário da maior parte
dos professores doutores – que ainda não estão
desempregados – no Brasil.
Perguntamos: quais os motivos reais que
farão com que os
7.672 estudantes brasileiros de graduação e de pós-graduação
nos Estados Unidos voltem para o Brasil? Segundo o pesquisador L. Marmora, os cérebros, quando se
estabelecem como residentes nos países de recepção,
fazem remessas de dinheiro para seus países de origem e
ainda promovem parcerias entre as universidades dos países
que os acolheram com as dos seus países de origem, contribuindo
com a sociedade que, por meio do pagamento de impostos, os formou.
Do nosso ponto de vista, o pesquisador
ou cientista que emigra não é aproveitado da melhor maneira pela sua sociedade
de origem. Ou seja, há uma perda de capital. E assim, em
conformidade com o sociólogo francês Pierre Bourdieu,
os emigrantes levam para outros países um conjunto de habilidades,
experiências, qualificações e relações
sociais que constituirão um capital cultural e social que,
ao contrário do capital material, se valoriza com o tempo.
Entretanto, neste quadro de miséria social, entendemos que
não é apenas a falta de investimento que coloca em
risco a produção de conhecimento no Brasil. Dentre
vários motivos, como a proliferação de instituições
de ensino superior que não se preocupam com qualidade de
ensino e o sucateamento de diversas instituições
públicas e privadas, destacamos que a estrutura, a organização
e o modus operandi das próprias universidades públicas,
no Brasil, preponderantemente, podem ser fatores que emperram o
desenvolvimento pessoal e profissional de seus pesquisadores.
Leiamos trecho da reportagem de S. Bittencourt
para a Folha de S. Paulo, de Heidelberg, de 30 de março de 2004, por ser
inspirador na tentativa de discutirmos o clima socioafetivo da
universidade brasileira: “Após 13 anos trabalhando
como pesquisador na área de biologia molecular, o inglês
Karl Gensberg, 41, pretende abandonar a carreira acadêmica
no mês que vem, quando termina seu contrato temporário
com a Universidade de Birmingham (Inglaterra), e adotar uma nova
profissão: encanador. A razão? A possibilidade de
ganhar até o dobro do que obtém como pesquisador, £ 23
mil por ano (cerca de R$ 130 mil). O caso de Gensberg foi explorado à exaustão
no mês passado pela mídia britânica.” Seria apenas a questão salarial que expulsou esse pesquisador
da referida universidade inglesa? Teria Gensberg a mesma realização
pessoal como pesquisador ou encanador?
A universidade, assim como a sociedade
brasileira, revela uma estrutura social fraturada, reproduzindo
institucionalmente um divisor social para o qual a detenção de mérito e a aquisição
de conhecimentos se revelam insuficientes para anular determinados
estigmas. Esse divisor separa a universidade em pelo menos dois
grupos: a) os indivíduos incluídos socialmente e
também integrados na universidade; e b) os indivíduos
excluídos socialmente, que ingressaram na universidade,
certamente em busca da inclusão social, via instituição
escolar, e que são vítimas das artimanhas da exclusão
institucional. Ou seja, apresentamos a possibilidade de que em
muitas instituições de pesquisa ocorra um sistema
de inclusão perversa, em que algumas unidades recebem mais
verba para pesquisa do que outras e que, dentro das unidades, pessoas,
independentemente do mérito de seus trabalhos, tenham mais
condições para realizá-los.
Passamos a questionar qual ou quais as
funções da
universidade nos dias de hoje. Retomemos as palavras de Roberto
Romano: “Contra as teses populistas, enfim, outro lado da
perversidade burocratizante, precisamos definir, sem paradoxo algum:
a função social da universidade é de ser universidade,
deixando de constituir-se numa caixa de ressonância de interesses
partidários, ideológicos, religiosos. Estes últimos
perseguem seus fins, legítimos na instância devida.
Nos campi, todos são bem-vindos, desde que não desejem
reduzir o saber ao metro curto de seus alvos conjunturais”.
Acrescentamos que a universidade não deveria conceber os
interesses de cunho absolutamente pessoal. Porém, sabemos
que muitos dos protagonistas dessas instituições,
longe de serem inventores, cérebros e descobridores, se
tornam oportunistas, exploradores de vidas miseráveis, vaidosos
e arrogantes. Os artifícios desse processo de particularizar
o universal aparecem, na maior parte das vezes, como resultantes
das contigüidades entre os procedimentos de ordem científica
e os de ordem burocrática. E assim, do nosso ponto de vista,
inúmeros pesquisadores e professores passam por uma carreira
tão brutal de humilhação social e profissional
no seio das universidades que, tendo em vista o estado emocional
a que são reduzidos, conseguiriam apenas fazer colares de
miçangas.
Desse modo, as razões apontadas impossibilitam a construção
da identidade de pesquisador em muitos dos profissionais brasileiros
nas universidades. Isso porque eles se sentem desvalorizados pelas
políticas públicas e são rejeitados no âmbito
das próprias instituições.
Muitos de nós, graduados e titulados, e mesmo aqueles estudantes
brasileiros que estudam nos Estados Unidos, talvez fiquemos por
aqui mesmo, na medida em que inúmeras oportunidades de trabalho
menos qualificado estarão nos esperando no exterior e com
elas todos os preconceitos pertinentes ao “ser brasileiro” – exemplo
máximo encontrado na figura do jovem Jean Charles de Menezes,
que foi morto a tiros no metrô pela polícia londrina
ao ser confundido com um terrorista.
Em suma, talvez não precisemos nos preocupar com a fuga
de cérebros brasileiros. Ela não ocorrerá em
breve. Talvez ainda nos acomodemos covardemente à falta
de verbas e à burocracia kafkiana existente em nossas universidades,
que tem facilitado a metáfora também kafkiana, transformando-nos
em insetos ou, como diria Henfil em seu Diário, em cucarachas. Nilce da Silva é professora da Faculdade de Educação
da USP e coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social
e Escolar: o Papel da Instituição Escolar.
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