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Uma das primeiras notícias da Bíblia é um
homicídio. Em família. Caim matou Abel.
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Seja como for que se entenda a narrativa – como história,
mito ou símbolo –, desde as origens a civilização
do homem é uma contínua busca, definição,
codificação, defesa e... violação dos
direitos humanos. E o primeiro e maior deles é o direito à vida.
Violá-lo é o maior crime. Grave, quando contra uma
pessoa; gravíssimo, quando contra muitas ao mesmo tempo. “Considero
genocídio, escravidão e tortura as mais graves violações
de direitos humanos, porque sua prática requer e implica
negação radical da humanidade, da dignidade e dos
direitos das vítimas.” Palavras de quem entende de
direitos e de violações: Paulo de Mesquita Neto,
graduado em Comunicação Social pela PUC de São
Paulo, em Direito pela USP, com mestrado e doutorado em Ciência
Política pela Columbia University, dos Estados Unidos, assessor
da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo e pesquisador-sênior do Núcleo de Estudos da
Violência (NEV) da USP. O NEV é mais uma vez notícia porque, em parceria
com a Edusp e a Presidência da República, acaba de
dar início a uma série de cinco publicações
sobre direitos humanos, sendo que duas já estão nas
livrarias. A primeira e mais alentada, com mais de 800 páginas,
chama-se Direitos humanos: uma antologia – Principais escritos
políticos, ensaios e documentos desde a Bíblia até o
presente. Trata-se de tradução de original em inglês,
coordenado por Micheline R. Ishay, diretora do International Human
Rights Program da Universidade de Denver, nos Estados Unidos. A
outra, Construindo a democracia – Direitos humanos, cidadania
e sociedade na América Latina, também é tradução
de obra norte-americana organizada pelos pesquisadores Elizabeth
Jelin e Eric Hershberg. De acordo com a apresentação,
assinada por Paulo Vannuchi, secretário especial dos Direitos
Humanos da Presidência da República, e Eduardo Manoel
de Brito, pesquisador do NEV, o livro inclui “um ensaio sobre
um novo tipo de violação dos direitos sancionado
pelo Estado: a agressão aos direitos dos criminosos comuns
como resposta ao aumento dos índices de criminalidade nas áreas
urbanas”. Educação – Também a professora Roseli
Fischmann, da Faculdade de Educação da USP, ressalta
a importância da publicação dos documentos
relativos aos direitos humanos, que “vem lembrar os compromissos
inalienáveis do mundo acadêmico com a plena dignidade
humana”. Ela lembra que, em 1998, sob sua coordenação,
a USP, em colaboração com a Unesco e a Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos, publicou o Manual de Direitos Humanos
no cotidiano, comemorando os 50 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Segundo a educadora, “o fato de os direitos humanos serem
complementares e interdependentes, como proclamado na Conferência
de Viena de 1993 e seguidamente reiterado, indica como é relevante
considerar o conjunto das questões econômicas, sociais
e culturais, juntamente com as questões políticas
e civis, e a boa divulgação dos documentos internacionais,
bem como textos de reflexão e aprofundamento, são
indispensáveis para que se possa consolidar no País
uma cultura que lute pela plena garantia dos direitos universais”.
Como acadêmica, Roseli tem se dedicado à temática
das minorias étnicas e religiosas e do anti-racismo, em
particular em suas ligações com a educação
escolar, em todos os níveis. Identificar a maior infração
aos direitos humanos, hoje, é difícil, de acordo
com a professora, “tendo em vista tanto o momento dramático
que vivemos, como a relevância de ponderar permanentemente
acerca da complementaridade desses direitos. Por outro lado, devemos
celebrar o espaço que a USP tem sido em debate atento e
de relevante colaboração com a sociedade civil e
com o Estado brasileiro no tema”. Tortura – Na defesa do ponto de vista de que genocídio,
escravidão e tortura constituem as mais graves violações
de direitos humanos, Mesquita Neto diz que parte essencial do processo
de desenvolvimento das civilizações contemporâneas
foi a limitação e controle da prática desse
tipo de violência. “Sua persistência ainda hoje,
em larga escala em alguns países e especialmente em situações
de guerra, mostra a dificuldade, fragilidade e importância
do processo civilizatório e das instituições
e políticas internacionais e nacionais de proteção
e promoção dos direitos humanos.”
Nas sociedades contemporâneas, continua o pesquisador do
NEV, essas três formas de violação de direitos
passaram a ser amplamente condenadas, mas continuam a ocorrer,
ainda que de forma não institucionalizada, e os responsáveis
freqüentemente permanecem impunes. “Quando o governo
de uma sociedade democrática como os Estados Unidos não
apenas tolera a prática da tortura, mas ainda redefine o
conceito de tortura a fim de legalizar e incentivar o uso da violência
em interrogatórios de suspeitos, é evidente que,
no mundo contemporâneo, as instituições responsáveis
pela limitação e controle do genocídio e da
escravidão estão mais enraizadas do que as instituições
responsáveis pela limitação e controle da
tortura. Existem diversos e novos tipos de violações
de direitos humanos nas sociedades contemporâneas, mas poucas
são tão disseminadas e enraizadas como a tortura.”
Não é diferente no Brasil, onde, de acordo com Mesquita
Neto, a tortura continua a ser problema gravíssimo, uma
prática rotineira de que são vítimas pessoas
sob custódia da polícia e do Estado, principalmente
em estabelecimentos prisionais e unidades de internação
de adolescentes. Afirma o pesquisador do NEV: “A tolerância
em relação à tortura de adolescentes e a impunidade
dos responsáveis, que até fazem questão de
se exibir na mídia, como se estivessem fazendo justiça,
são um dos sinais mais evidentes de déficit de civilização
e de democracia que existem no Brasil”.
A propósito da série Direitos Humanos, do NEV e da
Edusp, Mesquita Neto observa que, no Brasil, o conhecimento da
história dos direitos humanos e das instituições
e organizações políticas de proteção
e promoção dos direitos humanos ainda é incipiente.
Data de 1996 o Primeiro Programa dos Direitos Humanos. Documentos
básicos para a compreensão dessa história
e da história de construção das sociedades
civilizadas e democráticas em que a maioria da humanidade
deseja viver não estão disponíveis em língua
portuguesa. “Traduzir esses documentos e tornar essas informações
acessíveis ao público brasileiro, aos formadores
de opinião, aos professores, pesquisadores e estudantes,
lideranças civis e políticas é um passo importante
para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais,
para a consolidação da democracia e a promoção
do desenvolvimento econômico e social do País.” Assim
pensou e fez o NEV.
![](ilustras/p1011c.jpg) Antologia – O primeiro volume da série Direitos Humanos
se divide em sete partes: Humanismo Religioso e Estoicismo: As
Origens dos Direitos Humanos, da Bíblia à Idade Média;
Liberalismo e Direitos Humanos: o Iluminismo; Socialismo e Direitos
Humanos: a Era Industrial; Perspectivas Contemporâneas do
Debate sobre Direitos Humanos: o Final do Século 20; O Direito à Autodeterminação;
Como Realizar os Direitos Humanos?; e Apêndice: Documentos
Internacionais Contemporâneos.
A literatura universal referente a direitos do homem encerra
conceitos e doutrinas polêmicos, embora todos concordem no essencial.
O texto bíblico citado (Êxodo 20), que abre a antologia,
já contém dois mandamentos que passaram por interpretações
diversas: “não matarás” diz respeito
implicitamente ao direito de garantir a vida do outro, mas é relativizado
por aqueles que entendem haver guerras justas; “não
roubarás” implica direito à propriedade, embora
não tenha havido outro mais contestado até hoje.
Outras vezes, movimentos de cunho político-religioso, como
as Cruzadas, embora aparentemente condenáveis pelo seu caráter
violento, não deixaram de contribuir indiretamente para
vitórias dos direitos humanos. Na Inglaterra, a Terceira
Cruzada e as altas taxas cobradas do povo e dos barões para
financiá-las e para pagar o resgate de Ricardo I, capturado
pelo Sacro Imperador Henrique VI, provocaram a instabilidade financeira
do Reino e exigência de direitos, resultando na Magna Carta
de 1215. Mais tarde, em 1679, o desdobramento disso deu na Lei
de Habeas-Corpus, garantindo que “nenhum homem livre pode
ser detido ou mantido em prisão ou privado de sua propriedade
a não ser por julgamento legal de seus pares, de acordo
com a lei da terra”.
Entendimentos diferentes sobre direitos individuais, civis ou
do Estado sempre tiveram tratadistas e filósofos, dependendo
de seu tempo, dos regimes em que viviam ou de crenças religiosas.
Iluministas pensavam diferente dos socialistas da era industrial,
estes ainda nem pensavam nos direitos dos homossexuais, da ecologia,
e as mulheres ainda não haviam conseguido a Declaração
de Pequim (1995). “A partir do fim da Guerra Fria, a questão
do uso da força na defesa dos direitos humanos em todo o
mundo ultrapassou a questão das lutas internas contra a
opressão, enquanto surgia um debate de âmbito mundial
sobre a intervenção humanitária internacional”,
observa Micheline Ishay, na introdução do volume,
acrescentando que “a questão dos meios apropriados
para alcançar fins humanitários reapareceu agora
(meados do século 20), de uma nova forma no contexto pós-Guerra
Fria: o debate sobre o direito da comunidade internacional de intervir
quando os governos não protegem os direitos humanos básicos
dos cidadãos”.
O apêndice traz 16 documentos internacionais contemporâneos,
um dos quais, a Convenção das Nações
Unidas para a prevenção e a repressão do crime
de genocídio (1948), foi extraído da Biblioteca
Virtual de Direitos Humanos, da Comissão de Direitos Humanos da
Universidade de São Paulo.
“Vida feliz segue os ditames da
moral”
Qual é, porém, a melhor constituição,
e qual o melhor modo de vida para a maior parte das cidades e a
maioria dos homens, se não aspiramos a um padrão
de excelência acima da capacidade dos cidadãos comuns
ou a uma educação para a qual são necessários
dotes naturais e meios concedidos pela sorte, nem à constituição
ideal, mas a um modo de vida capaz de ser partilhado pela maioria
dos homens e uma constituição ao alcance da maior
parte das cidades?
As constituições chamadas aristocráticas,
das quais falamos há pouco, ficam de certo modo fora do
alcance da maior parte das cidades, e em outras se aproximam do
chamado governo constitucional, sendo portanto adequado falar destas
duas formas como se elas fossem uma só. Realmente, as conclusões
a respeito de todas estas questões repousam nos mesmos fundamentos,
pois se dissemos com razão na Ética que a vida feliz é a
vivida de acordo com os ditames da moralidade e sem impedimentos
e que a moralidade é um meio-termo, segue-se necessariamente
que a vida segundo este meio-termo é a melhor – um
meio termo acessível a cada um dos homens. O mesmo critério
deve necessariamente aplicar-se à boa ou má qualidade
de uma cidade ou de uma constituição, pois a constituição é um
certo modo de vida para uma cidade. Existem em todas as cidades
três classes de cidadãos: os muito ricos, os muito
pobres e em terceiro lugar os que ficam no meio desses extremos.
Trecho de Política, do filósofo grego Aristóteles
(384-322 antes de Cristo), publicado em Direitos humanos:
uma antologia.
O direito à educação
“O Partido Operário Alemão exige, como base
espiritual e moral do Estado: Educação popular geral
e igual a cargo do Estado. Assistência escolar obrigatória
para todos. Instrução gratuita.”
Educação popular igual? Que se entende por isto?
Acredita-se que na sociedade atual (que é a de que se trata),
a educação pode ser igual para todas as classes?
O que se exige é que também as classes altas sejam
obrigadas pela força a conformar-se com a modesta educação
dada pela escola pública, a única compatível
com a situação econômica,
não só do operário assalariado, mas também
do camponês? “Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução
gratuita”. A primeira já existe, inclusive na Alemanha;
a segunda na Suíça e nos Estados Unidos, no que se
refere a escolas públicas. O fato de que em alguns Estados
deste último país sejam “gratuitos” também
os centros de ensino superior significa tão somente, na realidade,
que ali as classes altas pagam suas despesas de educação às
custas do fundo dos impostos gerais”.
Trecho de Crítica do programa de Gotha (1875), de Karl
Marx, publicado em Direitos humanos: uma antologia.
Todos
nascem livres
Artigo 1º
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotadas de razão e consciência e devem
agir em relação umas às outras com espírito
de fraternidade.
Artigo 2º
Toda pessoa está capacitada a gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição. (...)
Artigo 3º
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal.
Artigo 4º
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão;
a escravidão e o tráfico de escravos serão
proibidos em todas as suas formas.
Artigo 5º
Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento
ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, publicado em Direitos humanos: uma antologia. |