“Já foi notado que os empresários brasileiros são mais desconhecidos que os índios”...

Em entrevista à Inovação Unicamp, o autor destaca a pouca atenção dedicada ao estudo do empresariado brasileiro e as dificuldades de conciliar a lógica da pesquisa com atividades empresariais...

Brasil, país de pioneiros e empreendedores... esses desconhecidos!

Entrevista - Jacques Marcovitch
Publicada em 20 de maio 2004
Inovação Unicamp

Decidi procurar o doutor Jacques Marcovitch — reitor da USP de 1997 a 2001, secretario estadual de Planejamento em 2002 —, ao saber do lançamento de mais um de seus livros, o primeiro volume de "Pioneiros & Empreendedores". No livro, o professor da Faculdade de Economia e Administração escolhe interpretar a trajetória de oito empresários, ou famílias de empresários, em busca de cumprir a tarefa que o subtítulo do volume define: contar "a saga do desenvolvimento no Brasil". São eles os Prado, Nami Jafet, Francisco Matarazzo, Ramos de Azevedo, Jorge Street, Roberto Simonsen, Julio Mesquita, Leon Feffer — nomes que fizeram o Brasil transitar do século XIX para o século XX, e de quem será fácil encontrar marcas na história do País neste século XXI. A entrevista que Inovação Unicamp transcreve a seguir resulta da gentileza do professor Marcovitch em responder às interrogações de uma jornalista que tem compromisso com o desenvolvimento do País e se pergunta sobre o papel que os empresários afinal jogam nele.

"Já foi notado que os empreendedores brasileiros são mais desconhecidos do que os índios", escreve no primeiro capítulo o sempre bem humorado administrador. Minha ignorância sobre esses desconhecidos, claro, diminuiu ao longo da conversa. Por isso, convido o leitor a acompanhar seus trechos principais. A entrevista foi concedida dia 2 de fevereiro de 2004, na FEA. O livro, publicado pela Edusp, se lê com prazer e interesse. No momento, o professor — que dedicou a maior parte de sua carreira acadêmica ao tema da Eficácia Organizacional na empresa — divide seu tempo entre São Paulo e Genebra, de onde revisou, por correio eletrônico, o texto da entrevista, no dia 17 de maio.

Logo no primeiro capítulo de seu livro, o senhor aborda — para discordar dela — a idéia de que os brasileiros não são empreendedores, que a cultura ibérica, também nessa questão, não nos favoreceria. Circula entre as pessoas preocupadas com a questão da inovação uma espécie de corolário dessa idéia, segundo o qual não há "cultura da inovação" entre nossos empresários, razão pela qual 'as empresas não inovam'. O senhor considera nossos empresários, bons empresários? Que qualidades são de as um bom empresário? Como o senhor acha que isso tem a ver com a necessidade que o País tem de crescer e se desenvolver?
Destaco três temas entre aqueles que você levantou. Primeiro, cabe sublinhar a diferença entre empresários pioneiros e empreendedores. Pioneiros desbravam caminhos ainda não trilhados. Empreendedores são também inovadores, mas têm exemplos a seguir. Em segundo lugar, cabe compreender o processo de inovação. A inovação dificilmente pode ser abordada de forma abrangente; ela deve ser analisada setorialmente. Alguns setores sempre inovaram no Brasil veja o caso da cafeicultura, por exemplo. Se olharmos para os Estados Unidos hoje, a inovação está migrando da área de saúde para a área de segurança (leia "A Biotecnologia está perdendo força?"). O expressivo volume de recursos públicos que o governo federal norte-americano está alocando à área da segurança e defesa induz a mobilização de instituições dedicadas à pesquisa. Em 2004, o orçamento do Pentágono é de US$ 400 bilhões, projetado para US$ 1 trilhão até o fim da década, se os republicanos ficarem no poder. Este expressivo volume de recursos induz com grande impulso a inovação. Até pesquisas realizadas no âmbito do National Institute of Health (NIH) estão migrando para a denominada "saúde de segurança". Refere-se ao estudo, por exemplo, de métodos de prevenção para evitar a contaminação em massa.

Isto significa que o governo determina o ritmo da inovação numa economia?
Não, a inovação prospera quando há talentos humanos, o governo aloca expressivos recursos em torno de poucas prioridades e há uma forte motivação econômica do setor privado. Foi o caso do setor florestal no Brasil, onde houve um empurrão em prol da inovação, mas o mercado foi determinante. O terceiro tema refere-se ao pioneirismo no Brasil. Os personagens selecionados na pesquisa vivenciaram na sua juventude a adversidade e a diversidade. Adversidades, por terem enfrentado, ainda muito jovem, dificuldades significativas. Este traço comum a todos os personagens está também presente nos Prado. Eles vivenciaram a adversidade decorrente do deslocamento do meio rural para o ambiente urbano. Quanto à diversidade, ela resulta do convívio com culturas distintas daquela de origem. Isso fez com que os personagens se tornassem mais sensíveis ao outro e abertos à mudança. A vivência de adversidades e os choques de cultura promovem uma predisposição para o enfrentamento de imponderáveis. Está aí uma origem da disposição de correr riscos.

Como se manifesta esta disposição em correr riscos?
Por terem lidado desde a sua juventude com o imponderável, enfrentam com maior naturalidade a incerteza. Simonsen, na área de construção; Ramos de Azevedo, no urbanismo; Matarazzo, no setor químico; Mesquita, no setor de imprensa; Street, no têxtil; foram personagens sensíveis a outras culturas e sintonizadas com o que estava acontecendo ao seu redor. Num período em que a mobilidade social era menor, eles aguçaram seus radares para captar oportunidades. Não faziam isso de forma metódica, como é hábito do cientista. Os pioneiros captam aleatoriamente informações e as depositam como se fosse em alvéolos de um favo de abelhas. Em determinado momento, a sua mente estrutura as informações depositadas. A partir daí o pioneiro constrói, com base no seu conhecimento, uma visão de futuro. Mais tarde, esta visão se transforma em projeto. Imagina-se, por vezes, que eles são influenciados por uma pessoa. Grande engano. Os pioneiros conversam com muita gente e buscam constantemente informações variadas. Além de encontros diversificados, Matarazzo passava noites inteiras lendo catálogos de máquinas novas. Folheando os catálogos, ia se inspirando sobre as novas tecnologias disponíveis e as inovações decorrentes.

O senhor diria que os empresários de hoje têm olhos postos no futuro, como tiveram esses pioneiros?
Pioneiros revelam um visível interesse em conhecer profundamente a realidade: põem o pé no barro, não ficam nos escritórios. Impregnados da realidade, eles constroem sua visão de futuro, enfrentam as incertezas e transformam seus sonhos em realidade. Um julgamento conclusivo sobre um empresário contemporâneo só e possível quando o personagem encerrou a sua trajetória empresarial. Há casos de personagens que alcançam notoriedade, são reconhecidos como inovadores, mas anos depois se revelam frágeis na viabilização duradoura dos seus sonhos. De outro lado, no setor de construção, por exemplo, os dirigentes de empresas como a Racional ou a Método, revelam a capacidade de inovação que marcou o pioneirismo de Ramos de Azevedo. A produção de celulose e papel que tem em Leon Feffer um dos seus pioneiros é uma indústria consolidada. A sua empresa e o setor continuam sendo altamente competitivos, expandindo as suas atividades. A Bahia-Sul serve de exemplo. Nesse setor, os investimentos em infra-estrutura portuária é que permitiram viabilizar as exportações. Outro exemplo: o setor têxtil, que teve Nami Jafet como um dos seus pioneiros e que recuperou sua competitividade. Um dos candidatos à sucessão da FIESP vem desse setor, e ousa competir com o candidato indicado pela situação, porque teve uma ação inovadora no setor têxtil e pioneira na industria da moda.

O indicado é Cláudio Vaz e o senhor está falando do....
Paulo Skaf. Não estudei com profundidade sua trajetória, mas quando verifiquei como está sendo legitimada sua candidatura à presidência da FIESP, pude observar que nos setores têxtil e de vestuário ele é considerado um vencedor. Aparentemente, a economia da moda no Brasil já superou a economia do carnaval. Numa perspectiva de ciclo longo, sem os pioneiros e inovadores que revolucionam a atividade produtiva, o Brasil não teria alcançado seu estágio econômico atual. Dizer que o Brasil não tem inovadores, não tem pioneiros, não tem empreendedores é uma compreensão equivocada da nossa história. Nenhum país teria feito em dez décadas o salto demográfico de 17 para 170 milhões de habitantes, mantendo sua coesão e uma razoável organicidade social, sem os pioneiros e empreendedores que marcaram o desenvolvimento brasileiro. Afastei-me propositadamente do presente porque somente a distância temporal assegura uma análise fundamentada sobre personagens dispostos a mudar a realidade.

Que outras características os pioneiros têm em comum?
Além de estarem continuamente sintonizadas com o seu entorno, têm uma enorme preocupação de gerar resultados. Eles têm seus valores, são sensíveis à lógica do poder, mas o seu maior compromisso é com a geração de resultados. Esta preocupação é que deveria ter um cientista que decida migrar da academia para mundo da empresa. A análise das organizações humanas mostra que as empresas gravitam essencialmente em torno de resultados; os partidos políticos e os governos, em torno do poder; e a academia enfatiza os valores. As universidades estão enfrentando o dilema da preservação dos seus valores de um lado, e a obtenção de resultados quantificáveis do outro. Valores se referem ao humanismo, ao universalismo, à busca da verdade e à responsabilidade social. Trata-se da universidade crítica que forma novos talentos através da construção dos seus valores que balizam correntes de pensamento inspiradores de uma sociedade em construção. O índice de desistência nas universidades públicas não é tratado com dramaticidade porque, como na Igreja, desde que os valores são preservados, a identidade universitária prevalece sobre o numero de estudantes formados. A empresa não sobrevive sem resultados em contínua expansão. Ela os persegue obsessivamente. Quando um pioneiro abraça uma causa social ou empreende uma ação filantrópica, ele aplica a mesma lógica de resultados presentes nos seus negócios. Os oito pioneiros estudados foram mais que bons empresários: os Jafet fundaram o Hospital Sírio Libanês, Leon Feffer foi decisivo na fundação da Hebraica ( clube de esportes e lazer da colônia judaica em São Paulo, N. do E.), Ramos de Azevedo, foi um dos fundadores da Poli (Escola Politécnica- USP, idem). Cada um deles entendeu que devia aplicar o que fazia bem no mundo dos negócios em outros campos. Foi também a busca de uma segunda vida. Tomando consciência da finitude da vida presente, esses personagens revelam uma preocupação em se perpetuar. Fazer de suas heranças, que incluem a arte tumular, sua mensagem para as gerações vindouras. Os pioneiros animam-se a fazer uma diferença através de características que lhe são únicas: flexibilidade para mudar de estratégia, extraordinária disposição para o trabalho, engajamento em iniciativas variadas, presença marcante em projetos sociais, e principalmente uma singular habilidade para conviver com a incerteza. Eles migram de um projeto a outro, abandonando com facilidade o que não da certo . Daí aparece, de quando em quando, a dúvida sobre sua lealdade a idéias e pessoas. Forrest Gump, personagem do filme de Robert Zemeckis, nunca se preocupa com os erros que cometeu no passado. Durante sua vida, olha para frente e sempre considera que está no momento certo, no lugar certo para fazer a coisa certa. Os pioneiros na área empresarial pensam da seguinte forma: "se acerto 6 em 10 já está bem; posso portanto errar algumas vezes e ainda ter êxito". Este raciocínio não pode ser aplicado em outros campos.

O senhor mencionou uma ambivalência para quem serve aos valores acadêmicos e à lógica da obtenção de resultados. É possível um pesquisador ser empresário?
Esse tema foi muito estudado. Lembro-me dos estudos realizados na década de 1970 aqui na Universidade de São Paulo e a legislação que prosperou na França calcada na experiência norte-americana. Aquele que busca se realizar na Academia, além de valores distintos do empresário, almeja se dedicar à formação de pessoas e à pesquisa. Se engaja na busca infinita do conhecimento e na busca de soluções para problemas novos. A geração de resultados de ciclo curto para a lucratividade, geralmente não motiva o pesquisador. Aqueles que desenvolvem, simultaneamente, uma dupla sensibilidade são raramente apoiados.

Como se manifesta esta falta de apoio?
Na Universidade, se um pesquisador diz: "quero me afastar temporariamente da universidade para tentar ganhar dinheiro através de uma invenção ou inovação", no presente, não será autorizado. Mas se o pedido e para trabalhar para o governo, a licença necessária e rapidamente concedida. É aceitável, portanto, esposar a lógica do poder, mas não é legitimo assumir a lógica dos resultados que leva a lucratividade. As universidades norte-americanas lidam com este tema com maior naturalidade. Como a universidade assegura ao professor o equivalente a nove meses de remuneração por ano, os três meses não cobertos permitem ao professor maior latitude de atividades de pesquisa inclusive aquela diretamente relacionada ao setor empresarial privado. No Brasil, o exemplo do professor Fernando Reinach, do Departamento de Bioquímica da USP e uma exceção. Ele que acumula competência para a pesquisa e preocupação com os resultados empresariais, além de prosseguir suas atividades universitárias colabora com a Votorantim Ventures. Ele reconcilia, assim, seu talento de pesquisador e sua sensibilidade empresarial. Um projeto de vida que poucas universidades induzem e um risco que poucos professores estão dispostos a correr.

O senhor escreveu, no primeiro capítulo: "Já foi notado que os empresários brasileiros são mais desconhecidos que os índios"...
É verdade. Compare o volume de pesquisa sobre as nossas raízes culturais ou sobre personagens da política brasileira com o volume de pesquisa feito sobre empresários. Com exceção das poucas teses elaboradas no campo das humanidades e nos estudos pioneiros do Professor Luiz Carlos Bresser Pereira (Empresários e Administradores no Brasil) e do Professor Fernando Henrique Cardoso (Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil), ambos da década de 1970, muito pouco se conhece do empresário brasileiro. Pouquíssimo.

Por que é assim? Será que não faz parte de uma desaprovação da sociedade brasileira a quem sai em busca do lucro? Parece existir uma idéia na classe média de que o empresário, se enriqueceu, é porque alguma coisa eticamente errada ele fez...
Poderíamos retomar as raízes culturais e religiosas da sociedade brasileira, mas isso traz poucas novidades. Temos uma sociedade, estruturada em grupos de interesse, com partidos políticos desprovidos de identidade ideológica. Muitos dos pioneiros não concluíram seus estudos. Alguns deles nem iniciaram uma formação escolar. Quem estudou e teve uma formação diferenciada, mas não detém riqueza tende a racionalizar: "Estudei e me formei, portanto sou inteligente... este empresário não estudou, portanto é menos inteligente. Como então enriqueceu desse jeito?..." Este preconceito baseado num raciocínio, equivocado e infundado, omite as adversidades e a diversidade vivenciadas pelos pioneiros desde sua mais tenra juventude. São personagens que constroem suas identidades pela via do êxito empresarial. Mais tarde, abraçam causas sociais e filantrópicas que levam ao reconhecimento e respeito.

O senhor diria que a universidade esteriliza o empreendedorismo?
Não, encontraremos muitos empreendedores egressos da universidade. Mas também não há forma de associar as grandes figuras do pioneirismo empresarial no Brasil, ou no exterior, às grandes universidades. Nem nos Estados Unidos é assim, William Gates e um exemplo recente. Seria interessante pesquisar a correlação existente entre empresários inovadores e exitosos com sua formação de origem. Temo que não será encontrada uma correlação.

O que o Brasil tem a favor de seu desenvolvimento?
Na análise dos 11 países com população superior a cem milhões de habitantes e que correspondem a mais da metade da população do planeta, o Brasil e o único que preserva um único idioma, e dotado de uma expressiva juventude, e detém uma capacidade de apreensão multi-cultural incomum. Somente parte dessas características se encontra na Índia, na China ou mesmo nos Estados Unidos. Na Europa ou no Japão, há um déficit de juventude com um visível envelhecimento da população. Não surpreende portanto, o Brasil revelar um forte espírito empreendedor, a ser direcionado para a construção de uma sociedade que ofereça modernidade, justiça, segurança e prosperidade.