Reflexões sobre o jogo drolático e a erística capiau, fundada em nonadas, tutaméias, coisas aparentemente insignificantes, viles figurae que, no cadinho (ignis circulator, matrix/matraz, athanor), da narrativa descentrada, transfiguram, de modo incessante, os possíveis núcleos
significativos do texto rosiano.
A escrita de João Guimarães Rosa transcende o realismo ao indeterminar as representações
na forma. Segundo Hansen (2012), em Forma literária e crítica da lógica racionalista em
Guimarães Rosa, a ficção literária de Guimarães Rosa indetermina as representações na forma
de um fundo que produz mistério. O artigo pontua algumas operações de indeterminação
no conto Hiato de Tutaméia: terceiras estórias. Com uma ficção da forma as Hiato, Guimarães
Rosa intervém no campo literário universal e no brasileiro. Este artigo destaca dois aspectos
relevantes na recepção da intervenção de Guimarães Rosa no campo literário brasileiro: a
predileção pelo realismo e o imaginário sacro. Guimarães Rosa atende parcialmente à recepção
formada na cultura letrada e afeita às representações realistas. Extrapola as expectativas
dela ao contemplar, simultaneamente, o imaginário sacro. Guimarães Rosa intervém em um
projeto histórico de adequação do imaginário aos padrões realistas de representação. Caso não
queira cooperar na naturalização dos padrões realistas, a ficção literária universal tem como
desafio produzir o sentido de realidades cada vez mais complexas na língua que, domesticada
em representações, reitera os lugares da linguagem na sociedade de classes. Desde o século
XIX, os escritores enfrentam a dificuldade de propor representações válidas em um mundo
de diversidade crescente e o campo literário brasileiro requer a representação da realidade
nacional. A intervenção da ficção de Guimarães Rosa nesse projeto de representação contempla
o imaginário sacro da recepção que, afeita à forma como método de formular na língua o desejo
e a prática, acolhe os efeitos da indeterminação como mistério.
No universo poético-simbólico de Guimarães Rosa, o boi ou touro tem assento privilegiado. A obra do escritor é atravessada pelos berros e urros do gado, seu comportamento e existência, sua estranha sabedoria imemorial. O boi de Rosa vem de longe. Oriundo do substrato religioso das mais antigas civilizações - Assíria, Babilônia, Egito, Índia - o boi aporta ao sertão rosiano munido de sua milenar herança mítica e sagrada. Igualmente, o vaqueiro que se lhe devota é muito mais do que o homem no pastoreio. Ele é o bukólos ou bubulcus, descendente dos pastores primigênios da Creta egeia, que é investido da função sacerdotal e dotado de vocação poética. O presente ensaio movimenta estas questões por meio da interpretação de duas estórias de Tutaméia, último livro do escritor: “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi” e “Hiato”.
“Hiato” foi o conto representado por mim e pela artista Sansorai Oliveira, e nossa proposta de intervenção artística consistiu em proporcionar ao público uma experiência de convívio, leitura, sensibilização, reconhecimento do universo do conto “Hiato” e exploração do espaço da Biblioteca Mario de Andrade , através do convite a realizarmos juntos uma travessia imaginária pelo sertão, tal qual os dois vaqueiros personagens do conto.
Pretende-se fazer uma leitura do conto Hiato, da obra Tutameia, de Guimarães Rosa, partindo da noção de trauma em Freud e Lacan, enfatizando a sua impossibilidade de representação. Espera-se demonstrar que o trauma, nesse conto, faz parte de um projeto rosiano de depuração da escrita que envolve a letra, no sentido lacaniano de litoral.