O conto “Reminisção” de Tutaméia alegoriza a autoria com a paródia da teoria platônica das reminiscências que pressupõe um sentido superior como fundamento das formas dos gêneros. Romão casa-se com uma mulher que a cidade satiriza. No final, morre nos braços dela que se transfigura na imagem canonizada de Nhemaria. A representação torna-se hagiográfica desde que Romão morre ou finge morrer com um sorriso verossímil capaz de validar a ficção de uma unidade que produz indeterminação ou deforma a dualidade clássica de forma e fundo. A deformação faz-se como paródia da forma que, segundo Bakhtin, resulta da relação do autor com a personagem; relação que regula a exigência clássica de exotopia com dialogismo e transgrediência. O autor dá acabamento à forma dotando-a de autoridade semelhante à do coro, pluralidade de sentidos, que radica a representação na vida social. A morte de Romão corresponde à do autor de um cânone fingidor.
Tutameia: terceiras estórias foi a última produção literária editada por João Guimarães Rosa, em vida. Apesar de ter sido um livro bastante vendido, já desde o final da década de 60, Tutameia não foi muito estudado pela crítica nos primeiros vinte anos de edição. Tutameia: engenho e arte, de Vera Novis, atribuia reação da primeira crítica ao humor excessivo e às inúmeras inovações estruturais. Com base no artigo “Grande sertão: veredas e o ponto de vista avaliativo do autor”, de João Adolfo Hansen, infiro que Tutameia, notadamente seus quatro prefácios, avalia, para o leitor, as próprias estruturas narrativas que inovam por negarem e ironizarem padrões tradicionais de representação como o clássico e o realista. Tutameia reverte os modelos clássicos de mímesis que, de acordo com Mímesis e modernidade, de Luiz Costa Lima, pressupõem a dualidade do real e do representado. Ao elogiar o caráter épico de alguns romances, Lukács afirmava, sob a influência de Hegel, que a forma ainda poderia servir de mediação à realidade com o auxílio dos sistemas filosóficos e dos modelos do discurso histórico. Contra essa possibilidade, um romântico como Friedrich Schlegel propusera o romance como forma negativa na aurorada modernidade, quando escritores intelectualizados e metafisicamente sós não poderiam compartilhar experiências comunitárias, mas endereçar formas irônicas quanto ao próprio caráter demasiado humano a leitores igualmente solitários. Este artigo apresenta alguns aspectos da primeira recepção de Tutameia para pensar seu silêncio como uma reação ao humor e à hipertrofia da forma que ironizamos padrões clássico e realista de representação.
Em Tutaméia: terceiras estórias, analiso a presença recorrente do chefe de vaqueiros Ladislau em contos que assinalam a moldura do livro, no índice de leitura. Especialmente em um deles, “Intruge-se”, que pertence também a um grupo de contos críticos à função do nome de João Guimarães Rosa, na história da literatura brasileira. Ao lado de considerações sobre a função do Rosa regional-universal, este artigo também destaca a repetição, em certos contos do livro, do personagem Ladislau cujo nome estudo desdobrando-o em significantes que evocam: o nome do pai de um modernismo regional, paraense; a São Ladislau; e ao nome sugerido pelo pai de Rosa, quando recém nascido. A partir do conto “Intruge-se”, estudo deslocamentos que o significante Ladislau produz no sentido civilizacional daquilo que críticos e historiadores da literatura postulam como a função canônica, assumida por João Guimarães Rosa, de síntese transcendental da dita tradição regionalista às tendências modernas e modernistas, na trajetória de evolução da literatura brasileira.
Proponho uma leitura do conto “Intruge-se”, que faz parte de Tutaméia: terceiras estórias, de João Guimarães Rosa. Trata-se de uma paródia de conto policial ambientado no sertão e protagonizado por vaqueiros que traziam uma boiada do Saririnhém quando se deparam com um crime. O protagonista não é um policial, mas o capataz Ladislau, que se encarrega de descobrir qual dos vaqueiros teria esfaqueado Quio. O conto recusa atender qualquer expectativa de um método ou de um raciocínio dedutivo que costumam ser os pontos fortes de um investigador, como nos contos realizados e teorizados por Edgar Allan Poe; e essa distorção faz o sentido da narração deslizar do investigador para a alegoria do autor que assinala o caráter cindido do sujeito e questiona o prestígio dado a ele nas sociedades modernas. A paródia do conto policial em “Intruge-se” integra um conjunto de contos de Tutaméia que propõem uma alegoria do autor. Esse artigo elaborará uma análise da paródia e da alegoria no conto de Rosa segundo a recusa da transparência da linguagem da qual trata Barthes com base na afirmação freudiana de que o caráter cindido do sujeito correlaciona-se à dualidade do signo. A investigação desarrazoada de Ladislau encena a perspectiva do autor que recusa padrões de representação realista como os utilizados no conto policial. O autor avalia o gênero conto como interferência no conto policial e aproxima-o da estória ou de uma invenção cujo valor consiste em intervir nas convenções narrativas para liberar a produção de sentido.
A escrita de João Guimarães Rosa transcende o realismo ao indeterminar as representações
na forma. Segundo Hansen (2012), em Forma literária e crítica da lógica racionalista em
Guimarães Rosa, a ficção literária de Guimarães Rosa indetermina as representações na forma
de um fundo que produz mistério. O artigo pontua algumas operações de indeterminação
no conto Hiato de Tutaméia: terceiras estórias. Com uma ficção da forma as Hiato, Guimarães
Rosa intervém no campo literário universal e no brasileiro. Este artigo destaca dois aspectos
relevantes na recepção da intervenção de Guimarães Rosa no campo literário brasileiro: a
predileção pelo realismo e o imaginário sacro. Guimarães Rosa atende parcialmente à recepção
formada na cultura letrada e afeita às representações realistas. Extrapola as expectativas
dela ao contemplar, simultaneamente, o imaginário sacro. Guimarães Rosa intervém em um
projeto histórico de adequação do imaginário aos padrões realistas de representação. Caso não
queira cooperar na naturalização dos padrões realistas, a ficção literária universal tem como
desafio produzir o sentido de realidades cada vez mais complexas na língua que, domesticada
em representações, reitera os lugares da linguagem na sociedade de classes. Desde o século
XIX, os escritores enfrentam a dificuldade de propor representações válidas em um mundo
de diversidade crescente e o campo literário brasileiro requer a representação da realidade
nacional. A intervenção da ficção de Guimarães Rosa nesse projeto de representação contempla
o imaginário sacro da recepção que, afeita à forma como método de formular na língua o desejo
e a prática, acolhe os efeitos da indeterminação como mistério.
Para o estudo de Tutaméia: terceiras estórias de João Guimarães Rosa, esta tese apresenta o estudo comparado da ironia considerada em sua acepção socrática de motivação mítica, em sua retomada pelo romântico alemão Friedrich Schlegel como negação de formas-de-exposição já convencionais, e com base na elaboração do conceito de ironia pela tese de Kierkegaard que critica o modo como os românticos se apropriaram da ironia socrática. A partir da teorização de um romântico como F. Schlegel, a ironia, literária e filosófica, pode ser pensada como uma condição da forma artística, entendida como artefato produtor de sentido. Com seus quatro prefácios, Tutaméia rege um coro de ditos e não ditos ou propõe um debate irônico acerca de: anedotas de abstração; um coro que legisla sobre os neologismos; outro coro que refere o parecer dos filósofos sobre nossa condição trágica negada por chistes de bêbado; a voz autoral. O quarto prefácio são VII pequenas narrativas narradas pelo autor em primeira pessoa. Na primeira, conversa com seu alterego sobre literatura, e nas demais considera as implicações da narração de estórias, algumas atribuídas a tio Cândido e Zito, projeções da voz autoral. Os prefácios apresentam como ficção a descentralização do sujeito da escrita para proporem um debate irônico que coloca em cena e suspende as leis da representação. Para o estudo comparado da ironia literária, a ironia na forma, esta tese se dedica, especialmente, à análise do primeiro prefácio que apresenta o modo de ser da estória que, por vontade e dever, nega a (H)história para se parecer um pouco com a anedota de abstração. Como ser instável e mítico, a estória retoma e reverte os termos da comparação aristotélica de poesia e história. O princípio superior do pensamento ou dos suprassensos das...
Essa dissertação tem por tema as estruturas do paradoxo e do mito na organização geral de Tutaméia. Escolhemos o primeiro prefácio para a discussão de uma economia poética, que o autor pontua nele, e que se relaciona com essa concepção do conjunto de prefácios e contos: simultaneamente paradoxal e mítica. Essas duas estruturas, paradoxo e mito, são semelhantes num aspecto que também as aproxima da mimesis: o sentido de indeterminação ou de errância entre a palavra e a verdade. Ao estruturar a indeterminação do sentido, sugerido por supra-senso, a outra leitura é garantida como obstáculo ao controle hermenêutico. Assim, a luta pela verdade é perpetuada para além de uma significação ou de um sentido último. A afirmação dessa errância é também, por um paradoxo, a afirmação da inexistência do erro: todos os sentidos são valorizados como perspectivas unívocas num cosmo de diferenças. O não senso, que em série ou no conjunto de textos nos dá o paradoxo, e o mito são mecanismos arcaicos, anteriores ao bom senso e seu raciocínio instrumental. Esses mecanismos, não senso e mito, produzem as surpresas ou os efeitos de desautomatização do jogo : uma espécie de transcendência materialista. O tema do erro e da verdade é central em toda Tutaméia. Escolhemos, para análise, doze contos em que sobressai a tematização do erro como limite do sentido, de modo que as anedotas são fundo para supra-sensos que sugerem e dão centralidade ao tema do abismo entre a palavra e a verdade.
Em Tutameia – Terceiras estórias (1967), o título conduz à questão do valor, pois
tutameia quer dizer também “quase nada”. Alguns críticos apontaram relações entre as estórias
ajudando a compor o todo do livro como a representação de um cosmo mágico-simbólico. Tal
concentração formal ou variedades de pistas a serem consideradas na interpretação pode ser
identificada desde Primeiras estórias que, junto às Terceiras estórias, marcam certa mudança em
relação às primeiras obras de Guimarães Rosa. A centralidade, devida aos títulos, da forma
narrativa “estória” funciona como pista principal no desenvolvimento de nossa pesquisa.
Pensaremos as implicações da forma narrativa “estória”, que privilegia a invenção, dentro da
ordenação geral dessa obra auto-avaliativa.