Em "Meu tio o Iauretê" de João Guimarães Rosa temos a vercom a confissão, por parte de um mameluco, da sua metamorfose dehomem em onça. No fim da sua fala ele é morto pelo seu interlocutormudo. A partir deste conto “impossível”, vai ser investigada a relaçãoentre a morte e a linguagem. No texto rosiano, de fato, não descobrimosapenas o parentesco essencial entre a phoné e o lógos que nela se dobra,mas nos aproximamos, sobretudo, do limiar último em que a voz seconfunde com o silêncio, em que o humano reencontra a sua essênciadesumana. Temos a ver, nesse sentido, com aquele que Giorgio Agambendefine como a "testemunha integral", ou seja, com quem se coloca nolimite insituável entre a vontade de dizer e a sua impossibilidade.
Ettore Finazzi-Agrò, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Roma La Sapienza, conta como iniciou os estudos em nossa literatura, por meio do “encontro deslumbrado” com a obra de Clarice Lispector: “passar de um desassossego a outro, da inquietação pessoana à desistência clariceana foi, para mim como para G.H., uma verdadeira revelação, ou talvez, um phármakon, um veneno-remédio”. Mais de três décadas depois desta descoberta, Finazzi-Agrò tem dois bons motivos para celebrar os frutos de sua dedicação às literaturas de língua portuguesa. Recentemente, sua produção acadêmica e sua militância na divulgação de nossa cultura alcançaram um reconhecimento especial: a concessão do título de “Doutor Honoris Causa” da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, o crítico publicou em 2013 Entretempos. Mapeando a história da cultura brasileira (Unesp), em que submete o corpus da poesia e da prosa brasileira a perspectivas epistemológicas da contemporaneidade a fim de “entender como funciona o tempo brasileiro” num “emaranhado temporal e narrativo em que sertão e cidade, interior arcaico e costa modernizada se enfrentam, se entrecruzam e se influenciam mutuamente”.
Apesar de alguns contos das Primeiras estórias terem sido escritos em momentos diferentes, a moldura que os enfeixa e os torna coerentes leva a olhá-los e a interpretá-los numa perspectiva eminentemente histórica, conectando o livro que os contém ao seu presente. O meu ensaio tenta, justamente, mostrar como Guimarães Rosa leia a sua contemporaneidade a partir dum anacronismo: duma “arqueologia” que se apresenta enquanto sistema hermenêutico duma época marcada pela exaltação do progresso. A fundação duma nova Pátria, simbolizada e depois concretizada na fundação duma nova Capital, leva, nesse sentido, o escritor a interrogar ainda – e como sempre – um passado recalcado para compreender o presente, sublimando ou revelando em palimpsesto a sua ideia duma comunidade “excogitada das camadas angustiosas do olvido”.
O ensaio trata do conto "Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, tendo em vista as implicações e consequencias do parentesco do protagonista com o jaguar.