Jó Joaquim, personagem do conto “Desenrendo”, de Tutameia, pode ser visto como um temulento, cujo destino é constantemente alterado, seja pela operação do “passado – plástico e contraditório rascunho”, seja pelos constantes acontecimentos desviantes de suas metas traçadas. Os desvios de rotas obrigam-no a reinventar a história, ou, dito com Santiago-Sobrinho, que por sua vez o diz com Nietzsche, a incorporar uma “outra verdade, uma verdade não histórica”. Joseph Hillis Miller, em “Derrida’s Destinerrance”, lembra-nos que Derrida fala de “destinerrância” como uma “possibilidade fatal de errar por não se alcançar um objetivo pré-definido temporalmente”, como lembra Sérgio Bellei, “é um destino de tal modo comprometido por errâncias que corre o risco de não atingir jamais seu ponto final”. Tal errância, como dissemos, obriga o personagem a agir contrariamente ao logos, ou, a criar um mythos, racionalizado pela arbitrariedade de um narrador que põe a fábula em ata.
O trabalho discute questões da teoria da literatura ligadas à representação, ou mímesis, importante tema para os estudos literários. A mímesis é abordada em Grande sertão: veredas a partir da representação que Riobaldo faz de si ao contar suas vivências a seu interlocutor, o que o leva a uma catarse de si mesmo.
Este texto parte de uma tentativa de aproximação de duas escrituras. De um lado, a de uma literatura pensante, nas palavras de Evando Nascimento, que é o Grande sertão: veredas; de outro, a escritura derridiana que, no pensamento da desconstrução, aponta possibilidades heterodoxas de interpretação da tradição. O escopo está na análise da cena de devoração de um macaco que era homem, no que se traça um paradoxo na escritura rosiana. Em paralelo a análises feitas por Derrida de cenas de devoração (simbólica ou não) de carne e de carne humana, as quais fazem parte de uma tradição “falogocêntrica” do Ocidente e traçam um imperativo da estrutura de dominação social, analisa-se a cena rosiana como inscrição problematizadora da tradição que associa determinados atos de comer à constituição essencialmente definidora do que é o ser humano dominante. Derrida afirma, em “Il fault bien manger”, que a estrutura social humana pressupõe e exige a ingestão “não criminosa” do cadáver, mesmo do cadáver humano. A cena rosiana, entretanto, insere-se como uma punção aterradora na estrutura social do sujeito humano, pois, ao passo que encerra o gesto estruturador das configurações de virilidade e humanidade, encerra também o gesto destruidor dos próprios do homem.
Este texto busca formular perguntas e problematizar a natureza da violência que se encena no conto “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa. Neste conto há um tipo de violência que está na ordem do absurdo, destituída de razão ou explicação aparentes. A violência que ali se encena, pela absurdidade e pela carência de fundo e razão, não parece admitir da crítica respostas satisfatórias, abalando, inclusive, os conceitos de representação e de representação da violência. “Meu tio o Iauaretê”, questionando as bases de qualquer racionalidade, se insere na ordem de uma violência
crua e desprovida de sentidos, impactante por sua carência de motivações aparentes além da dissolução de limites entre o humano e o animal – espécie de monstruosidade – e por sua esteriliadde. Interessa-nos a experiência abissal dessa violência que não se deixa reduzir e que mesmo depois do fim da fala dissemina-se para além do texto, incômoda e renitente. Tal leitura terá apoio teórico, principalmente, de Jacques Derrida.
Meu primeiro contato com Clara Rowland aconteceu quando, em 2014, pleiteava eu uma bolsa de doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa e, como a pretendia como tutora/co-orientadora,
apresentava-lhe um projeto de investigação sobre a escrita da violência em Rosa e que tentava unir este a Derrida, a bolsa não vingou, mas o contato e o projeto, estes, sim. Na entrevista que se segue, conversamos sobre a recepção, ou (não)recepção da literatura de Rosa e da literatura brasileira em Portugal, mas, principalmente, sobre um modo diverso de se ler e receber o texto rosiano. Deixemos, pois, falar o diálogo.
A proposta deste trabalho é discutir alguns aspectos e questões da Teoria da Literatura tendo como corpus literário o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Dentro da proposta a que nos dedicamos, discutimos, temas ligados à representação, ou mímesis, conceitos que os filósofos Platão e Aristóteles introduziram nos estudos que hoje chamamos literários e que são, por mérito, temas relevantes das adjacências literárias. A representação que em Platão era subversiva, que em Aristóteles era necessária, e que nos estudos é evidente, leva-nos a refletir acerca do constructo literário. A mímesis foi associada, no primeiro capítulo, aos mecanismos diegético da Memória, antia e venerada Deusa, passando pelas questões evidentes dos dois filósofos, a imitação e a representação, para chegar ao mecanismo diegético do narrador e, por não, único personagem do romance rosiano, que, ano final, nos leva a conclusões de que o que ele faz é apresentar-se - e não imitar ou representar - fazendo-o, antes de tudo, a si mesmo, e não ao interlocutor que parece acompanhá-lo durante toda a narrativa. Desta forma, ele nos leva a um outro aspecto inerente à mímesis, ou seja, à catarse que este narrador se fará promover.
Este estudo se propõe à análise das narrativas de violência e suas indeterminações na obra de Guimarães Rosa. Para tanto, estabeleceu-se uma aproximação entre o escritor mineiro e o filósofo franco-argelino Jacques Derrida. A partir do caráter altamente indecidível e indeterminante da escritura de João Guimarães Rosa, a leitura de Grande Sertão: Veredas e de narrativas como Desenredo, a série Zoo de Ave, Palavra, Meu tio o Iauaretê foi feita a luz de operadores textuais derridianos, tais como destinerrância, ex-apropriação, différance, soberania, acontecimento, falogocentrismo. Tal indecidibilidade terminou por fazer duas frentes de leitura: de um lado, leu-se o texto rosiano à luz da escritura derridiana, de outro, pode-se afirmar que também o texto derridiano foi lido à luz da escritura rosiana. Para tanto, foi necessária a atenção à força dos paradoxos e das aporias dessas duas escritas, de tal modo que o trabalho não faz a pergunta metafísica que é da ordem do que é? ou do como é? a violência na escritura rosiana. Assim, a análise se desdobra na tarefa de verificar como o texto rosiano põe em questão uma série de postulados da metafísica que regula os sentidos e aponta para um caminho em que estes deslizam e não se fixam em categorizações rígidas, valendo o axioma: "tudo é e não é".
No romance Grande Sertão:Veredas , de Guimarães Rosa, dentre os diálogos que o personagem protagonista Riobaldo estabelece, dois merecem destaque, aquele feito com o Diabo, um ser que,segundo o próprio Riobaldo, existe e não existe, conforme a maneira como a linguagem o busca, e um outro feito com ele mesmo, na intenção de conhecer a sua própria existência. Ao buscar um diálogo com o ser e o não-ser do Diabo, Riobaldo chega, consequentemente, a um diálogo consigo mesmo, posto que há a possibilidade de se ter feito um pacto com o Diabo, como fora dito, um ser que "é e não é". A dúvida do pacto com aquele que pode não existir, leva o personagem rosiano a uma dúvida quanto à própria existência, dessa forma, em sua narrativa, ele procura o sentido do existir, duvidando, muitas vezes, de sua veracidade. Ao especular sobre sua incerteza, Riobaldo acaba por chegar a uma catarse de seu ser, adquirindo a consciência de que o que existe, por fim, é o ser humano em sua travessia.