Com um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 10 trilhões, 400 milhões de potenciais consumidores e uma taxa de crescimento em torno de 7%, a China é hoje a segunda maior economia do mundo. É também o principal parceiro econômico do Brasil, ocupando a posição de líder tanto no ranking de destino das exportações brasileiras (com 19% das remessas) quanto das importações (16% do montante), segundo dados de 2014 do guia de comércio exterior e investimento Brasil Export.
A relação econômica entre Brasil e China é tema de pesquisa na Universidade de São Paulo (USP). A Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) abriga o Programa de Estudos Asiáticos (ProAsia), um grupo de pesquisa que promove estudos aplicados acerca da relação política e econômica do Brasil com países do leste asiático, especificamente China, Japão e Coréia do Sul.
Em entrevista à Agência Universitária de Notícias - AUN, o líder do ProAsia, Gilmar Masiero, professor do Departamento de Administração da FEA-USP, comentou as atividades desenvolvidas no ProAsia e analisou a relação econômica entre o Brasil e os três países asiáticos, especificamente com a China, apontando entraves e oportunidades desse relacionamento.
AUN: O que é o ProAsia?
MASIERO: É um núcleo de pesquisa registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), reconhecido pela instituição, que busca agregar potenciais interessados no desenvolvimento das relações do Brasil e da America Latina com os países asiáticos em geral.
Esse interesse é prioritariamente acadêmico. Todos os que estiverem interessados em desenvolver estudos, pesquisas e cursos que envolvam esses dois espaços geográficos, de forma multi e interdisciplinar, são bem-vindos.
Um dos objetivos principais do grupo é contribuir para a diminuição dos gaps (intervalos) de desconhecimento recíproco. A idéia é trabalharmos na direção de aumentarmos a massa crítica, que é muito reduzida, dos poucos interessados – e, através deles, da sociedade em geral – sobre os desenvolvimentos que acontecem naquela e nesta parte do mundo.
Especificamente, sempre que possível, aproveitamos a presença de especialistas no país para a realização de seminários. É o caso do seminário The China Boom In Latin America: An End To Austerity?, ocorrido em setembro, quando o professor Stephen Kaplan, da George Washington University, esteve aqui em um tour de pesquisa. Nós aproveitamos o conhecimento dele para discutir com a nossa comunidade. Isso é uma coisa que ocorre pontualmente, mas de forma incremental, sempre que possível, sempre que temos oportunidade.
Eu mesmo venho desenvolvendo artigos que envolvem tais países. E já no próximo ano devo ir para a China novamente, dado que são poucos os brasileiros envolvidos nesse assunto. E também para a Espanha, concentrar sobre a Coréia, dado que existem poucos pesquisadores no mundo que estudam Coréia.
Então, a minha idéia é que, gradualmente, consigamos despertar o interesse dos “feanos” e “uspianos” em geral para que eles desenvolvam suas iniciações científicas, seus TCCs, mestrados, doutorados e seus programas de pós-doutorado envolvendo essa relação do Brasil com os países asiáticos.
AUN: Como o Brasil se relaciona com os países asiáticos?
MASIERO: O Brasil se relaciona à sua maneira. Historicamente, todo relacionamento, para que exista, tem que ser recíproco. Na minha experiência, é muito mais eles que se relacionam conosco, do que nós com eles.
Existem inúmeras iniciativas e proposições desses países do leste asiático (nos quais eu estou mais focado). A receptividade, a reciprocidade brasileira é – como nos é característico – lenta, morosa, difícil, complexa, o que leva a um número muito grande de insatisfações por parte deles. E o que torna bastante difícil uma ampliação e um aprofundamento dessas relações.
AUN: Mas, no caso Brasil-China, a relação estabelecida através do BRICS já não seria uma oportunidade de crescimento relacional entre os dois países?
MASIERO: A sua pergunta é extraordinariamente oportuna. É uma novidade no cenário internacional: a formação e a expansão desse grupo, em termos de importância dessa sigla, que coloca junto parceiros completamente diferentes.
Se “seria uma oportunidade”, eu acho que não, porque nos fóruns multinacionais não se consegue aprofundar relações bilaterais. Os fóruns multilaterais tentam convergir alguns encaminhamentos na superficialidade do momento, normalmente para beneficio individual. Então, um país tenta emplacar uma coisa, mas é para benefício dele; outro país emplaca outra coisa, mas também para seu próprio benefício.
O aprofundamento das relações específicas Brasil-China pode e deve dar-se na esfera bilateral. A cooperação existente em outro fórum facilita esta relação, não resta a menor dúvida, mas ela não é fundamental.
Houve progressos inesperados em termos da institucionalização dos BRICS, mas isso é um pequeno grupo de países tentando, através da sua institucionalização, pressionar outras instâncias multilaterais. Não tanto um aprofundamento das relações entre eles. Claro que acontece, mas o objetivo maior é de pressão junto aos demais organismos, mais do que propriamente resolver os problemas do agrupamento, que continua sendo muito díspare, muito assimétrico, e muito difícil de ser levado adiante, dado aquilo que todos colocam – assimetrias existentes, distâncias geográficas, os sistemas políticos e econômicos muito diferenciados, etc.
Gilmar Masiero é professor da FEA e líder do ProAsia
AUN: Quais as oportunidades para o Brasil no estreitamento das relações com a China?
MASEIRO: Primeiramente, a grande oportunidade que nós estamos perdendo e ninguém está percebendo é a nossa total falta de crescimento econômico.
Se a China cresce, vamos dizer, a 7% e você cresce a 0%, há uma dificuldade de se relacionar, porque o seu dinamismo é menor do que o dinamismo dela. Por isso, o crescimento econômico é fundamental para se dinamizar as relações com não importa quem.
Mas se eles crescem a 7% e você cresce 7% também, aumenta o relacionamento e a reciprocidade: aumenta a compra e venda, o investimento das duas partes, as viagens nos dois lados. Enfim, aumenta tudo.
Não havendo esse crescimento de uma das partes, a outra parte também fica com dificuldades e então ela busca outros parceiros tão dinâmicos quanto ela. Isso é regra básica geral.
A segunda observação interessante, voltando no que eu coloquei anteriormente (“é muito mais eles que se relacionam conosco, do que nós com eles.”), se você não for ativo, proativo, é importante que você seja passivo de uma maneira inteligente.
Qual seria a maneira inteligente? Podendo extrair das relações maiores ganhos do que ganhos menores ou perdas. Matematicamente ou abstratamente é bastante simples: se em um relacionamento não dá pra ser cinco para você/cinco pra mim, que seja seis/quatro, mas não nove/um.
Como fazer isso? Aí tem que ser esperto, inteligente, estratégico. Os chineses sempre estão propondo relações estratégicas win-win, uma relação ganha-ganha, o que e ótimo, um excelente discurso diplomático. Mas percebo também que eles só vão executar a proposição se o ganho deles for maior do que o seu. E o que estou dizendo é que o ganho precisa ser igual ou quase igual ao deles.
AUN: Parece haver um desapontamento mundial com a diminuição do crescimento chinês, apesar da taxa ainda ser alta em comparação aos outros países. A conta desse grande crescimento, desse “milagre” chinês, parece estar prestes a chegar. Pensando nos prejuízos à economia brasileira decorrentes do chamado “milagre econômico” da década de 1970, acirrar as relações econômicas brasileiras com as chinesas não é um perigo?
MASIERO: Tudo isso é possível. É possível porque o rápido crescimento econômico japonês na década de 1960 também foi considerado um “milagre”. O nosso foi no final da década, entre os anos de 1968 e 1972. A idéia é que nós tivemos cinco anos com taxa de crescimento de 10% e chamamos esse crescimento de “milagre”, que depois resultou em um pesadelo, quando a conta chegou.
No caso chinês, eu não sei se é “milagre”, mas já são 30 anos de crescimento à taxa de dois dígitos, nas décadas de 1980, 1990 e 2000. Somente agora, nesta década, é que o crescimento caiu. Se está vindo a conta, é possível, mas é de um período bastante generoso de crescimento econômico.
Curiosamente, já antes, mas principalmente neste século (quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio), todas as análises internacionais sobre o crescimento econômico da China indicavam que ele não se sustentaria, que a conta viria. E a conta ainda não veio.
Tenho a impressão de que o crescimento econômico chinês é mais robusto do que a maioria das outras experiências. Afirmo isso porque a China tem um sistema político-econômico bastante diferenciado. Lá você tem o Estado como o grande orquestrador do desenvolvimento, e você não tira o Estado disso tão fácil.
E se o Estado tem correspondido durante 34 anos às expectativas dos agentes que estão congregados naquele espaço geográfico – e dos agentes internacionais que lá atuam –, não vejo como ele possa quebrar de uma hora para outra. E falo isso porque não quebrou quando da crise asiática. A China, inclusive, foi quem ajudou aquele espaço geográfico a sair da crise. E ela suportou relativamente bem a crise americana, que se transformou em crise européia, que se transformou em crise global.
Conclusão da história: a China cresce menos, mas é o país que mais cresce. E, agora, numa base muito maior do que anteriormente, o que dificulta o crescimento econômico. Mas, curiosamente, em termos de PIB, continua sendo o melhor desempenho mundial de que tenho notícia, e isso se traduz no maior dinamismo daquela economia em relação às demais.
AUN: Levando em conta as diferenças entre os dois países, a China pode servir de exemplo para o Brasil?
MASIERO: Essa é uma ponderação clássica de todo mundo: nós somos diferentes. Não, a cultura deles é diferente. E o item cultura sempre emerge nessas discussões. A minha pergunta é: nós usamos relógio? Sim, e o chinês também. Somos pontuais? Não, mas o chinês é. Para pegar outro exemplo, o japonês não é pontual: ele chega antes do horário, porque não quer atrasar.
Então, algumas pessoas aprendem a usar o relógio, a tecnologia, outras pessoas não. Eu diria que toda e qualquer experiência, seja chinesa, japonesa ou inglesa, pode, sim, ser aprendida por não importa quem, desde que se queira. Se não quiser, não vai conseguir.
Pensando no desenvolvimento das nações, do mercado, todo mundo aprendeu bastante com a primeira revolução industrial. Depois aprendeu rapidamente com a segunda revolução, e, em seguida, aprendeu brutalmente com a terceira (com velocidade e amplitude maiores).
Tudo é possível de se aprender. O grande problema, me parece, não é a falta de habilidade ou de capacidade de aprendizagem, mas sim a universalização dessa aprendizagem.
Os chineses, com sua imensa população, já incorporaram o mercado capitalista de consumo (mais de 400 milhões de pessoas recentemente), mas essas pessoas continuam sendo as da região costeira, das cidades mais desenvolvidas. Por quê? Porque eles não conseguem universalizar a aprendizagem dos demais, que é o nosso problema. Nosso grande problema é: não importa o que seja, nós elitizamos, concentramos, fechamos, não divulgamos.
Não damos transparência porque não somos solicitados, não somos cobrados. Eu costumo brincar em sala de aula de que eu vou pra Ásia e os alunos estão sentados na primeira fileira. Venho para a América Latina, eles estão sentados na última fileira. Ninguém me cobra, ninguém me explora. Sou professor e parece que o pessoal não está interessado. Estão mais perto da porta para sair do que da porta para entrar. E esse me parece ser o grande problema do nosso baixo desempenho econômico.