Muitos associam a progressão continuada à baixa qualidade do Ensino Fundamental, alegando que, com esse regime, alunos despreparados avançam à próxima série. Contudo, ao tratar sobre o tema, o pesquisador Adolfo Samuel de Oliveira, da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), aponta que a análise de resultados educacionais não deve levar em conta apenas o papel da progressão continuada, mas também de aspectos socioeconômicos e estruturais das escolas.
Oliveira é autor da tese Progressão continuada e outros dispositivos escolares: êxito e fracasso escolar nos anos iniciais do ensino fundamental. O tema gera polêmica entre pais, alunos e profissionais da educação, uma vez que tal regime exclui a possibilidade de reprovação a cada série, mudando a lógica temporal das escolas: ao invés de dividir o aprendizado em anos, este passa a ser separado por ciclos. Assim, em redes que utilizam tal método, apenas no fim de cada ciclo o aluno pode ser reprovado - caso não tenha, ao longo dos anos daquele ciclo, conseguido apreender de forma adequada o conteúdo. O formato está previsto nos artigos 23 e 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), mas de forma não-obrigatória, de modo que cada rede (municipal ou estadual) pode decidir sobre sua adoção.
Durante sua pesquisa, Oliveira trabalhou com duas escolas do interior paulista: uma estadual e outra municipal. No Estado de São Paulo, a progressão continuada foi adotada na rede estadual em 1998, durante a gestão Mario Covas. Em 2013, o governador Geraldo Alckmin introduziu ainda um terceiro ciclo no Ensino Fundamental, que agora é dividido do 1º ao 3º ano, do 4º ao 6º e do 7º ao 9º (antes, os ciclos iam do 1º ao 5º ano e do 6º ao 9º). Já nas redes municipais, cabe a cada munícipio decidir o regime de aprovação, e por isso, a escola analisada na pesquisa de Oliveira não abolia a reprovação anual. Embora ambas as escolas da pesquisa tivessem as mesmas taxas de aprovação de alunos, a municipal obteve maior pontuação na Prova Brasil 2009. Portanto, seria a repetência anual responsável pelos melhores resultados dessa escola? Oliveira mostra, contudo, que o regime de aprovação não é a única diferença entre as duas escolas.
Fatores estruturais também interferem no aprendizado
O trabalho do pesquisador teve como foco as turmas do 5º ano, que fariam a Prova Brasil ao final de 2009. A pesquisa baseou-se na observação direta em sala de aula, além de entrevistas com professores e diretores e levantamento de dados sobre uma série de fatores (como gestão escolar, composição das turmas, realização de tarefas de casa, nível socioeconômico dos alunos, entre outros). “O objetivo, portanto, era compreender a progressão continuada, mas sem deixar de lado a complexidade existente no processo de escolarização”, diz Oliveira. Durante sua análise, o pesquisador percebeu, por exemplo, que a escola municipal tinha um nível socioeconômico relativamente maior que a estadual. “Esse é um fator que, em sociedades com desigualdades sociais, tende a influenciar o desempenho dos alunos, fazendo com que os de nível socioeconômico mais alto tenham, de modo geral, melhor desempenho nos testes cognitivos”, explica.
Outro ponto levantado por Oliveira foi a composição das turmas de acordo com o aproveitamento dos alunos: na escola municipal as classes eram mais heterogêneas, ao passo que as da escola estadual eram divididas em fortes, médias e fracas. Segundo uma professora entrevistada pelo pesquisador, na classe de alto rendimento, quase não havia indisciplina, tampouco alunos com necessidade de recuperação. O resultado de tal segregação pôde ser visto na Prova Brasil: a diferença de aproveitamento entre a turma forte e a fraca da escola estadual foi de mais de 80 pontos, ao passo que, na municipal, os resultados de suas turmas foram bastante semelhantes. Oliveira aponta que essa forma de agrupar os alunos é condenada pelas políticas de não-repetência, e que pode ser prejudicial ao ensino. “Isso acabou por favorecer os alunos que ficaram na classe forte e prejudicar os que ficaram na classe fraca”, afirma ele.
Progressão continuada exige acompanhamento periódico dos alunos durante o ciclo, e não apenas nos testes finais.
Foto: Ministério da Educação (MEC)
O pesquisador também ressalta a precariedade do reforço escolar em ambas as escolas. O reforço e a recuperação escolar são tidos como obrigatórios pela Lei de Diretrizes e Bases, e uma vez adotada a progressão continuada, tornam-se fundamentais como forma de acompanhamento dos alunos ao longo dos ciclos, sanando suas dificuldades e evitando que estes concluam as etapas sem ter alcançado os objetivos propostos. Contudo, o acompanhamento ficou aquém do necessário nas escolas analisadas. “O reforço e a recuperação escolar não eram oferecidos de maneira sistemática nem contavam com toda a infraestrutura que sua importância exigia, em termos de professor, local, horário e recursos didáticos”, aponta.
Assim, no amplo contexto que envolve a aprendizagem no Ensino Fundamental, a progressão continuada não pode ser considerada como única e soberana vilã, como prega o senso comum. No Ensino Médio, por exemplo, a aprovação automática não é aplicada, e isto não significa que a qualidade da educação nesta etapa seja melhor. Pelo contrário, se implantada de forma correta - trazendo consigo avaliações periódicas que orientem o processo pedagógico, além de utilizar reforço e recuperação para sanar as dificuldades dos alunos - a progressão continuada pode atuar no sentido de proporcionar um melhor aprendizado, o que não é possível com a mera reprovação anual. “A reprovação é uma medida pedagógica eficaz? É capaz de proporcionar condições suficientes para o aluno recuperar o que não aprendeu?”, questiona Oliveira. “Se os condicionantes que engendram o fracasso escolar não forem alterados, o aluno é punido duas vezes: com a reprovação e com oportunidades de aprendizagem que já se mostraram inadequadas”.