A educação musical de crianças costuma se dar de maneira tradicional, em sala de aula, respeitando uma ordem pedagógica previamente estabelecida. Buscando romper essa lógica e propor uma nova maneira de ensinar música, que favoreça o desenvolvimento do lado humano dos alunos, a pesquisadora Camila Zanetta elaborou sua dissertação de mestrado, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA). Na pesquisa, ela notou que jogos baseados na improvisação tanto cênica quanto musical criam ambiente propício ao aprendizado e ao contato com o outro.
Zanetta organizou uma oficina de música que foi oferecida aos alunos do 1º ao 5º ano da Escola de Aplicação (EA) da Faculdade de Educação da USP (FE) no ano de 2014. O curso, que teve duração de dois meses, teve como objetivo não somente dar às crianças a possibilidade de aprender conceitos musicais, mas também de incentivar a criatividade e a integração com colegas de outras faixas etárias.
Para conseguir esses resultados, a pesquisadora investiu em práticas de improvisação. Em vez de reproduzir músicas que já existem, as crianças puderam criar sons e jogos. “A ideia era entender a maneira como as crianças se relacionam com a música, brincando e jogando com os sons, e colocar isso em sala de aula”, explica. Ao fim da oficina, a pesquisadora avaliou a recepção dos jogos por meio de entrevistas com os alunos, que defenderam o método por favorecer a convivência, a diversão e outros aprendizados, como o respeito aos colegas.
Aprender brincando
Os jogos praticados durante as aulas criavam ambiente similar ao das brincadeiras. As crianças assumiam o papel de um personagem e criavam sons vocais, corporais e também utilizavam instrumentos, que podiam ser convencionais – como o piano e o violão – ou não-convencionais, como simples copos de plástico. “Acho muito importante os professores pensarem em conduzir a aula de música dessa maneira, respeitando o brincar, o lúdico e a infância”, defende Zanetta.
Alguns dos jogos foram criados pela própria pesquisadora, e foram realizados nas primeiras aulas. Um deles, por exemplo, chamado de 'pega-congela sonoro', consistia em uma brincadeira semelhante ao pega-pega. “A ideia era a criança criar um som, sair correndo atrás das outras e ir contagiando todas as outras com o seu som.” Outros jogos trabalharam conceitos musicais como ritmo e timbre. Os alunos, segundo a pesquisadora, disseram ter saído da oficina se sentindo "músicos de verdade".
Depois das crianças adquirirem certo repertório, Zanetta deu a elas a oportunidade de inventar seus próprios jogos em conjunto com os colegas. De acordo com a pesquisadora, foram eles os grandes preferidos das crianças, que passaram a sentir orgulho das criações e aprenderam a respeitar a opinião dos outros. “Eles criavam os seus jogos, então eles discutiam, debatiam, dialogavam, defendiam as suas ideias, mas entendiam quando os outros queriam outras ideias”, diz.
Outros benefícios
Além do desenvolvimento de capacidades musicais e do respeito, a pesquisadora também observou algumas mudanças de comportamento. Para mapear a recepção e o impacto dos jogos, ela pediu aos alunos que registrassem em seus cadernos o que haviam aprendido em cada aula. Os registros (chamados pela pesquisadora de ‘protocolos’) podiam ser escritos ou desenhados, dando liberdade para cada um se expressar da maneira que se sentisse mais à vontade.
Foi nesses cadernos que Zanetta notou outro exemplo de salto de desenvolvimento proporcionado pelos jogos. Um dos alunos, que ela chamou na pesquisa pelo nome fictício de João, havia sido diagnosticado com paralisia cerebral leve, e apresentava comportamento inquieto. Além disso, ele parecia não se interessar muito pelo que aprendia em aula. Nas aulas regulares de artes, independente do assunto tratado, seus desenhos sempre retratavam meios de transporte. Após a oficina, no entanto, ele passou a representar outros elementos: os instrumentos musicais e as pessoas com quem havia se relacionado. Seu comportamento também foi diferente, menos agitado do que o comum. “Muitos autores falam que a música tem esse potencial de te fazer relacionar com o outro de uma outra maneira”, destaca a pesquisadora.
Para Zanetta, sua pesquisa evidencia a importância de proporcionar a convivência entre os alunos, o que se aplica não somente às aulas de música, mas à própria concepção de escola. "Quando a criança fica ali sentada numa cadeira, das nove da manhã às vezes até cinco da tarde, o que ela está vivenciando ali, qual o contato dela com as outras pessoas?", questiona. "A gente precisa se desvincular de algumas coisas super tradicionais que a escola continua reproduzindo para que a criança possa sair da sua carteira, possa entrar em contato com o outro."