ISSN 2359-5191

06/08/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 70 - Sociedade - Instituto de Psicologia
Interpretação dos surdos sobre o mundo é singular e heterogênea
Comunidade surda valoriza experiência visual para além da língua de sinais, criando performances para se manifestar
Performance de surdos do grupo Corposinalizante Foto: Karina Bacci, para o site do MAM

Um vaso de flor posicionado com discrição no canto da sala. Raramente é notada pelos que entram, saem, sentam-se ao seu lado. Ocasionalmente, recebe cuidados: um copo de água, adubo e terra fofa. Logo depois, volta a ocupar seu lugar na dinâmica do aposento, esquecido rente à parede. O cachorro da família; comida e uma cama quentinha nunca lhe faltam, às vezes ganha até um carinho. As pessoas passam por ele rapidamente, o cumprimentam com um leve toque em sua cabeça, pouco se comunicam afinal, ele não entenderia. Um “vaso de flor” e um “cachorro”; tais figuras representam o que sentem dois interlocutores de uma pesquisa do Instituto de Psicologia da USP feita com o objetivo de compreender como os surdos observam e interpretam o mundo. Essas metáforas são apenas algumas das peculiaridades dos surdos estudados, que demonstraram que esse público vive, convive e percebe o ambiente de forma muito diversa e distante de estereótipos.

O estudo foi desenvolvido na tese de doutorado da psicóloga Alessandra Giacomet, que trabalha com surdos há anos. Ela entrevistou cinco pessoas com surdez profunda, buscando ‘ouvir’ as sinalizações de suas percepções e de suas histórias de vida. Além disso, participou de manifestações culturais e atividades cotidianas de grupos de surdos. As entrevistas com os interlocutores foram gravadas em vídeo, sendo que alguns deles usavam apenas sinais, outros ora oralizavam ora sinalizavam. A complexidade da comunicação tornava o texto muito diferente do que é diretamente sinalizado ou oralizado, as linguagens se misturavam formando diversas mensagens e ideias. As transcrições foram feitas pela psicóloga com ajuda dos próprios interlocutores, que se manifestavam quanto à exatidão e à essência das narrativas.

Narrativas e experiências ímpares

Nessas conversas, os interlocutores contavam sobre sua convivência com a surdez desde o momento em que perceberam ser diferentes. A psicóloga teve a preocupação de convidar pessoas que contassem com trajetórias distintas e de diferentes gerações, de modo a criar um amplo leque narrativo. Algumas possuíam surdez profunda desde nascimento, enquanto outras passaram a viver com a condição apenas durante a adolescência. Muitas vezes, o momento de “tornar-se” surdo não coincidia com o de “perceber-se” surdo. A pesquisadora Giacomet conta que um dos interlocutores, cujo nome fictício é Hélio, profundamente surdo desde o nascimento, constatou que não ouvia sons - sentido que todos ao seu redor possuíam - apenas aos dez anos de idade. Durante todos esses anos, sua família sabia sobre a surdez, mas ele não notou claramente a peculiaridade.

O perfil dos interlocutores é muito heterogêneo. Cada um deles foi educado de uma forma, estudando em escolas com metodologias pedagógicas variadas. Wilson frequentou desde os cinco anos de idade um antigo internato para surdos, enquanto a maioria ia a escolas ‘normais’. Todos são filhos de pais ouvintes e usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar. Dois dos interlocutores, Wilson e Coyote fazem parte de famílias de surdos (os pais eram ouvintes, mas seus ascendentes não). Uma das interlocutoras, Emília que foi mãe sendo surda há vários anos, mostrava-se angustiada por não conseguir ouvir o choro de seu bebê, e perceber como ele se sentia. Ela negava sua surdez e demorou a reconhecer que precisava de ajuda.

O tema ‘família’ era sempre bastante polêmico durante as entrevistas, pois muitos familiares dos interlocutores não realizavam trocas comunicativas profundas com eles, por isso, sentiam-se excluídos e isolados das vivências. As narrativas sobre convívio familiar eram marcadas pelas dificuldades e falhas nas comunicações com parentes. A partir desse sentimento surgiram metáforas como as do “vaso de flor” e do “cachorro”, ignorados pelo lar. Por não se sentirem acolhidos, alguns deles já não frequentavam reuniões familiares.

Sobre a ‘comunidade surda’, apareceram discursos de pertencimento e também de rejeição ao que não se encaixavam completamente nos moldes sociais da comunidade. Emília, uma das interlocutoras, por exemplo, perdeu a audição mais tardiamente, com a fala já desenvolvida, e aprendeu a Língua de Sinais apenas na fase adulta. Ela sentia certa resistência dos surdos por não ser uma “surda nativa”. A psicóloga explica que a comunidade aparecia ou como ponto de encontro entre iguais ou sendo questionada. “Afinal, se seu objetivo é integrar, por que isso nem sempre ocorre? Por que há um separatismo entre grupos; de um lado os que têm implante coclear, de outro os que oralizam, ou que sinalizam…?” eram algumas das questões dos interlocutores.

 

Divulgação do Corposinalizante

O corpo como expressão

Outra parte da pesquisa de Giacomet consistiu de ir a campo observar as produções culturais conduzidas por surdos, buscando o sentido que tais práticas têm para eles e pensando a expressão além da língua, através do gesto, da linguagem do corpo, da poesia, do teatro, das artes visuais, das performances corporais, do silêncio e do som. A pesquisadora visitou baladas imaginadas para contemplar surdos, em que o chão, geralmente feito de madeira, reverbera os sons e transmite a vibração da música. Segundo ela, essas baladas são ponto de encontro de surdos e também de ouvintes, que se reúnem para dançar e conversar. Giacomet foi a saraus, palestras sobre cultura surda, e outros eventos artísticos e culturais, anotando o que observava em diário de campo. Também acompanhou o grupo ‘Corposinalizante’, composto de surdos e ouvintes, que produz cultura e realiza encontros no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).

Ela registrava falas e episódios que presenciava, entrando em contato com os interlocutores posteriormente. A partir dessas experiências ela pôde constatar que, para os surdos, a cultura está muito ligada à experiência visual, sendo fortemente representada pela Língua de Sinais, mas não apenas por ela. Envolve a expressão pelo corpo, pela arte e pelo movimento, capazes de garantir o acesso a todos, não apenas aos surdos. “Abrir possibilidades de expressão está para além das línguas sinalizadas e das línguas oralizadas”, afirma a psicóloga. “São questões tão amplas e subjetivas que cada um encontrou uma forma singular de observar e interpretar o mundo”.

Surdos no Brasil

Segundo o censo realizado pelo IBGE em 2010, cerca de 9,7 milhões de brasileiros possuem deficiência auditiva, o que representa 5,1% da população brasileira. Deste total, 1,7 milhão apresenta grande dificuldade para ouvir e 344,2 mil são surdos. As Academias Americanas de Audiologia, Otorrinolaringologia e Pediatria afirmam que aproximadamente 0,1% no mundo nascem com deficiência auditiva severa e profunda. No Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Educação para Surdos, a principal causa de surdez em crianças de até dois anos é a meningite bacteriana ou virótica. Para contemplar a educação dessas crianças, um decreto da Presidência da República de dezembro de 2005 estabelece que o ensino de Libras seja obrigatório em cursos de formação de professores.

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