Articulação entre engajamento histórico e formas mágico-religiosas. Essa é a contradição fundamental presente na ópera Café, de Mário de Andrade, que é estudada por Pedro Fragelli no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. O libreto, elaborado entre 1939 e 1942, além de ser considerado uma das obras mais importantes da segunda fase do artista, é também a mais engajada: "Mário quer provocar uma revolução por meio de Café", afirma o pesquisador. Não por acaso, a ópera não pôde ser encenada durante a ditadura militar.
O tema da obra é a crise de 1929 e seus reflexos na economia cafeeira, como o desemprego, o desperdício do café que não era comercializado, a fome e a miséria. Esses fatores impelem os trabalhadores a realizarem uma revolução, mesmo contra a própria vontade: "É como se eles [os revolucionários] fossem levados por uma força superior", explica Pedro. "A revolução se dá com uma espécie de transe de possessão coletivo de caráter dionisíaco".
A combinação de forças míticas e históricas permeia toda a peça. Mário desejava participar dos movimentos sociais através de uma literatura engajada, mas em suas obras incorpora estruturas mágico-religiosas, como o transe e o sacrifício. No conjunto da obra de Mário, essas estruturas não se encontram apenas no Café, mas é nele que atingem sua intensidade e força política máximas. "É uma obra que procura enfrentar os movimentos da história, mas é como se para conseguir isso ela precisasse apelar à mediações não históricas", afirma Pedro.
O fundamento desse caráter metafísico é a impossibilidade histórica do momento, devido as contradições daquela época. Era o Estado Novo, momento em que tudo pedia uma revolução social no país, mas sua realização efetiva não estava à vista. Pedro explica que isso faz com que o artista recorra a soluções desesperadas, como apelações míticas. "E a música entra nesse sentido, como uma força mítica mas que é também política", explica ele. "No fundo trata-se de entender as condições de realização de arte politica engajada na periferia do capitalismo".
É importante ressaltar que, para Mário de Andrade, a música e o teatro tinham grande importância como meio de intervenção na prática social. Para o autor de Macunaíma, a música era a mais coletivista das artes, porque por meio de seu ritmo era capaz de mobilizar e de organizar grupos e massas. Além disso, isso acontecia de forma imediata, diferente da literatura, em que a mediação é mais demorada e necessita de racionalidade e de inteligência. O teatro, por sua vez, era geralmente pensado por Mário como uma arte popular de natureza pedagógica. Combinadas, música e teatro formavam aquela que seria considerada pelo escritor, a partir de meados dos anos 1930, a mais política das formas artísticas: a ópera.
Mário solicitou ao compositor Francisco Mignone que compusesse a música de Café e ele aceitou o convite com entusiasmo, chegando a discutir com Mário, por correspondência, aspectos da concepção musical da ópera. No entanto, Mignone não chegou a compor a partitura. Pedro conta que, com base nas cartas e anotações de Mário, é possível que o projeto de música que ele concebia para a peça não era simples, e exigia uma extraordinária habilidade do compositor. “Mário chega a dizer em uma carta que dificultou a tarefa do compositor, porque as estruturas da linguagem de Café seriam, elas mesmas, musicais", explica Pedro. "Até onde a gente pode inferir, Mignone entendeu que não dava para fazer, que o Mário pedia uma coisa complexa demais", conclui.
A peça foi finalmente musicada pelo compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter e estreada em 1996, em Santos.