ISSN 2359-5191

30/11/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 119 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Gramática paulista do início do século 20 marca posições sociais
Pesquisa mostra como lugar do sujeito gramatical em frases de documentos institucionais traduz status de homens e mulheres
Alunas da Escola Normal em álbum de fotografia da instituição; fonte: Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos

A posição do sujeito em uma frase parece apenas uma lição de gramática, mas ela pode revelar preocupações sociais e identitárias. É o que revela o doutorado de Priscilla Barbosa Pinheiro, que se debruçou sobre a posição do sujeito e do clítico – pronomes como "me", "te", "se", "lhe" que podem aparecer em três posições diferentes – no português paulista culto no início do século 20.

Pinheiro estudou os documentos oficiais de duas importantes instituções de educação paulista, a Escola Normal – formadora de professores e voltada principalmente para o público feminino – e o Ginásio da Capital – exclusivamente masculina e tida como uma espécie de preparatório para outras academias, como a de direito.

Seu recuo histórico explica-se por dois motivos: primeiramente, porque a virada do século 19 para o 20 foi o momento em que se institucionalizou a educação pública no Estado. E foi também uma época de formação de identidade cultural em São Paulo, em que a língua era motivo era motivo de "brigas ferrenhas" entre articulistas de jornais, por exemplo.

A pesquisadora exemplifica com um personagem de Lima Barreto no romance "O Triste Fim de Policarpo Quaresma", publicado na forma de folhetim em 1911, que é um médico e que escreve artigos para jornais. O doutor, quando escrevia, buscava parecer culto traduzindo seu texto para "o clássico", ou seja: invertendo a ordem das orações, optando por um vocabulário mais requintado, tudo para dar uma impressão de cultura. "Esse personagem me mostrou que o uso da língua estava em questão na época até como expressão de identidade de grupo", conta Pinheiro.

Meninos também alunos da Escola Normal; fonte: Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos

Meninos também alunos da Escola Normal; fonte: Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos


LINGUÍSTICA

Voltando aos termos gramaticais, a ordem dos elementos na frase já absorvida e mais utilizada pelo português do Brasil na época era sujeito-verbo, ou ordem direta. No entanto, os textos da Escola Normal, uma importante referência da onde saiam professores para o Estado inteiro, apresentam elevado uso da ordem indireta, ou sujeito pós-verbal. Já no Ginásio da Capital essa opção pelo sujeito pós-verbal era bem menos utilizada.

"É interessante perceber que mesmo em casos que a probabilidade de inversão é menor, como em "Fulana comeu o bolo", os textos da Escola Normal invertiam mesmo assim", destaca Pinheiro. A pesquisadora ressalta ainda que os professores de ambas as instituições, apesar de se não serem os mesmos, pertenciam a um mesmo grupo social, uma mesma categoria. No entanto, eles possuíam alunados e objetivos bem diferentes.

O que explicaria então a diferença nos textos das duas escolas? Para Pinheiro, os rapazes do Ginásio da Capital já tinham seu lugar determinado socialmente, enquanto as moças que estudavam na Escola Normal precisavam lutar pelo seu. "Talvez por isso elas se equipassem com uma normal social mais rígida, do português clássico de Portugal", diz ela, que vê nesse processo a língua como instrumento de ascensão social.

Essas diferenças se traduzem até no álbum de fotografias da Escola Normal, que também possuía alguns alunos homens. Nas imagens, os meninos aparecem em posições relaxadas, com o olhar firme – "como se dissessem: estou te encarando mesmo", diz Pinheiro – ou sorrindo e brincando. Já as meninas aparecem mais recatadas.

A pesquisadora usa essas imagens para explicar como as duas escolas acabaram se complementando em sua pesquisa: "se eu não tivesse visto as fotos dos rapazes, não teria notado a rigidez das moças. O mesmo vale para a gramática, se eu tivesse estudado apenas a Escola Normal eu teria percebido essa preocupação de se alinhar com a norma, mas não a relacionaria com o público feminino."

Os textos das escolas também são marcados por similaridades, caso da colocação pronominal, em que predomina o uso de próclise (antes do verbo) generalizada em orações subordinadas e de ênclise (depois do verbo) nas orações infinitivas preposicionadas. Segundo Pinheiro isso indica, respectivamente, um forte vinculo ao normativismo – já que a colocação pronominal era um "ponto gramatical" vigiado nas orações subordinadas – e aos políticos paulistas, entre eles os próprios professores das escolas que ocupavam cargos na administração pública.

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