Anna Muylaert, diretora do longa "Que Horas Ela Volta?", escolhido para representar o Brasil na próxima edição do Oscar, esteve na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo para debater sua produção. A instituição é um dos cenários do filme, que gira em torno de Val, uma empregada doméstica, e de sua filha Jéssica, que viaja do Nordeste a São Paulo para prestar vestibular.
Por meio da trajetória de Jéssica, Anna Muylaert conduz críticas sobre o modo como a sociedade se estrutura e os aspectos separatistas que regem as relações no país. Dessa maneira, a arquitetura é um aspecto fundamental da narrativa: "O assunto do espaço é muito importante no filme – tanto pela questão social, quanto porque eu tenho um apreço especial pela questão da arquitetura e do urbanismo. Isso acaba vindo de uma maneira quase inconsciente até", diz a cineasta.
Mas a carga arquitetônica da produção não veio, em sua totalidade, de maneira “inconsciente”– Anna propõe uma metáfora sobre organização social em todas as instâncias da montagem – desde o enquadramento até as locações, que constroem uma narrativa singular, paralela à história das duas mulheres:"O filme está falando sobre estrutura social, sobre espaço. Então a arquitetura está como um símbolo dessa estruturação. E ali a gente está falando da estrutura colonial – aquela casa ainda é igual à casa grande e à senzala, né?”, pontua. “A partir da reforma dos espaços, a gente vai mudar a sociedade também”, finaliza.
Além dos cenários, a movimentação da câmera também reforça, com certa sutileza, o debate sobre a demarcação de espaços: "É o patrão visto do ponto de vista da empregada. Eu demorei muito para chegar nesse lugar e, a partir desse enquadramento, você vê o patrão de um jeito muito diferente do que geralmente é visto. Ali tá invertido, a gente está olhando do ponto de vista dela. Na cena em que ele está pedindo água, por exemplo, a gente consegue ver o patético da situação."
Na trama, Jéssica passa por construções da cidade de São Paulo que possuem carga simbólica: a Faculdade de Urbanismo da USP, projetada por Vilanova Artigas, e o Edifício Copan, de Oscar Niemeyer. Sobre a opção pela FAU como cenário, Anna justifica: "Foi pelo próprio prédio da FAU, a história do Artigas e toda a tradição política de esquerda da Faculdade", diz. “Acho que tem um símbolo político. A FAU é um símbolo de resistência."
A professora da FAU Nilce Aravecchia, mediadora do debate com a cineasta, comenta a importância dos locais que servem de pano de fundo para a trama: “A casa [onde a maior parte da história se desenvolve] demarca o dentro e o fora, o público e privado e, nessa relação, a demarcação do lugar de cada um ainda como um aspecto de tensão. Quando Jéssica vai para esses lugares externos, me parece que Anna coloca a ideia da cidade – até mesmo aqui na FAU – como o espaço que não tem a limitação do que é o lugar de cada um, ou do que deveria ser o lugar de cada um nesta sociedade cheia de desigualdades", aponta.
Para ela, FAU e Copan, apesar de muito diferentes, cumprem papel semelhante no longa, especialmente por um contexto comum aos dois arquitetos: "Acho que são duas questões: uma é a localização desses edifícios do ponto de vista histórico - da sua relação com os arquitetos e com o momento em que foram projetados – e a outra é o vínculo político – Artigas e Niemeyer eram filiados ao PCB e se definiam comunistas."
Nilce sugere que ambas as obras sejam analisadas considerando a perspectiva histórica na qual estavam inseridas. Para ela, é necessário levar em conta a ideia de que os arquitetos acreditavam que a revolução socialista seria alcançada por meio do cumprimento de determinadas etapas. Entre elas, a formação de uma aliança entre a burguesia e os trabalhadores: “O Copan é um grande condensador social urbano, e pensa nesse vínculo, na ideia da aliança dos trabalhadores com a burguesia e o capital nacional. As várias tipologias habitacionais no mesmo edifício, um térreo voltado para o comércio, para a cidade, tudo isso está relacionado à ideia de contraposição ao que seria um pensamento mais conservador, de manutenção dos privilégios”, explica. “O Copan está relacionado à ideia de que São Paulo é uma cidade cosmopolita e grande referência na transformação do país”.
No caso da FAU, a professora esclarece: “A pesquisa com concreto armado está vinculada a essa possibilidade do desenvolvimento tecnológico da indústria da construção civil brasileira. E, ao mesmo tempo, tem a dimensão pedagógica do edifício. Podemos pensar como uma grande congregação social, onde se estabelecem relações, relaciona-se a vivencia do dia-a-dia à uma ideia de cidade. Vemos as grandes rampas, onde as pessoas se encontram o tempo todo, os pavimentos intermediários, que se voltam para o Salão Caramelo...A todo momento você pode visualizar essa dimensão de vínculo entre as diversas atividades da Faculdade.”
O caráter político da construção se estende à possibilidade de, na FAU, enxergarmos as marcas do processo construtivo: “A ideia de deixar a marcação das formas de concreto na própria construção remete a esse vínculo também, à participação do operário na obra”, finaliza.
De um modo geral, Nilce analisa que o filme faz menção a esse período histórico vivido pelos arquitetos na tentativa de vislumbrar um futuro: "Me parece que Anna Muylaert lê nas construções algo como a completude do projeto que estava colocado naquele momento. Do ponto de vista espacial da cidade, a incorporação de todas as pessoas no local se coloca como de fato uma possibilidade, acho que é isso que ela tenta abordar”, explica. “Acho que Anna se apropria dessas discussões, do que era o desejo desses arquitetos naquele momento, para realmente pensar numa possibilidade de futuro", conclui.