Há muitos anos, em uma aldeia distante, vivia Lara. A adolescente, no auge de seus 15 anos, morava em uma casa simples com seus pais e irmãos. Todos os dias seu pai chegava do trabalho irritado, por essa razão acabava agredindo toda família. Um dos conselheiros da aldeia, ao saber o que estava acontecendo, foi à casa de Lara e levou ela e os irmãos para um abrigo. Aquela foi a única solução encontrada para resolver o problema. Esse poderia ser apenas mais um conto de fadas com enredo diferente dos tradicionais, mas é uma história real pela qual Lara (nome fictício) e tantas outras meninas passam. A violência contra adolescentes é tema central da tese "Experiência emocional e futuro imaginado de meninas adolescentes em situação de violência familiar", desenvolvida no Instituto de Psicologia (IP) da USP.
Em seu estudo, Elisa Corbett investigou como meninas adolescentes experimentam as situações de violência familiar e como essas vivências se relacionam ao seu imaginário sobre o próprio futuro. Ela conta que essa é uma problemática que envolve vários aspectos, pois tanto as causas como as consequências são inúmeras, e a relação ultrapassa a ideia de que há sempre uma mesma pessoa no papel de vítima e outra no de agressora. Uma das situações mais comuns encontradas durante os atendimentos é a reprodução de violência entre gerações - uma mãe que assume uma postura agressiva com seus filhos, pois seus pais a tratavam da mesma forma, o que gera um ciclo que dificulta o fim deste cenário.
De acordo com a pesquisadora, muitos pais também costumam entender a violência em relação aos filhos como uma prática educativa, pois acreditam que é a única maneira de evitar que se envolvam com o crime ou cultivem más relações. “Essa situação é atenuada pelo contexto social das minhas pacientes, dado que muitas moram em locais violentos nos quais é comum a ordem se impor por meio da figura de traficantes”, destaca.
O futuro imaginado
A pesquisa realizada por Elisa Corbett se pautou no método psicanalítico, um jeito de compreender os fenômenos humanos a partir da associação livre (técnica que incentiva o paciente a dizer o que vem à sua mente) e da atenção atenção flutuante (modo como o analista escuta o analisado, não privilegiando nenhuma parte do seu discurso). As histórias ouvidas pela psicóloga foram transcritas em forma de narrativas ficcionais, nas quais ela manteve a semelhança entre os casos, mas mudou a época o e lugar onde ocorreram. Nos relatos foi possível identificar três casos principais: nova família, ascensão social e redenção - campos do sentido afetivo emocional das pacientes.
Entre os problemas mais recorrentes relacionados às questões de cunho social está a saída de casa precoce dos adolescentes. A ideia de construir uma nova família ainda muito cedo, com 12 ou 13 anos, em uma expectativa de romper com o ciclo da violência, é comum, afirma a pesquisadora. “A irmã de uma das minhas pacientes engravidou aos 12 anos, de forma consciente, para poder sair de casa. Ela não suportava mais a situação com os pais e enxergou aquela como a única maneira deles aceitarem sua ida”, conta. Hoje, a menina tem 15 anos e três filhos, sair de casa e tornar-se mãe não cooperou para que sua vida fosse mais fácil, mas essa continua sendo uma estratégia usada por muitas adolescentes, explica Elisa. Mesmo quando não são mães, está enraizado no seu imaginário das jovens a concepção de que na sua família, em um futuro próximo ou distante, a convivência será diferente e elas assumirão uma postura amiga e compreensiva com seus filhos.
A possibilidade de reescrever a própria história também aparece como uma das alternativas para pôr fim ao ciclo de violência estabelecido. “As pacientes sempre mencionam a vontade de estudar, ter um bom trabalho e conseguir romper com a situação de pobreza e vulnerabilidade social na qual se encontram”, diz a psicóloga. No entanto, esse desejo muitas vezes é reprimido pelos próprios pais, que nutrem uma visão dos filhos de desconfiança e desvalorização - em alguns casos, falando repetidas vezes que eles nunca alcançarão seus propósitos. “Todas essas experiências se unem e transferem para a menina a sensação dela estar sozinha lutando contra o mundo”, acrescenta.
O último dos três quadros encontrados com frequência, a redenção, diz respeito ao imaginário de que a pessoa sofre violência porque é má e faz coisas erradas. Dessa maneira, para romper com a situação, é necessário estabelecer um novo posicionamento, tanto no convívio com as outras pessoas, como em relação a atitudes que afetam apenas a si própria. Durante a pesquisa, Elisa Corbett usou um procedimento chamado “desenho-história com tema”, no qual ela pedia para que as pacientes desenhassem uma adolescente dos dias atuais e, em seguida, essa mesma adolescente no futuro. Esse procedimento, além de facilitar o diálogo, traz informações sobre as meninas, pois tem caráter projetivo. Nesse momento, foi possível identificar que as participantes consideravam importantes mudanças em seu comportamento e personalidade - por exemplo, ser menos agressivas, ir menos a festas e se redimir por atitudes que consideravam pecado.
Todos os atendimentos realizados por Elisa aconteceram na ONG “SOS Ação, Mulher e Família”, no município de Campinas. A ONG recebe desde casos de mulheres que procuram por orientação jurídica, até casos de violência física e sexual. Na pesquisa, foram escutadas dez meninas entre 14 e 18 anos, sendo que quatro estão institucionalizadas (moram em abrigos). Em 50% dos casos houve relatos de abuso sexual doméstico ou urbano, e todas as pacientes já tinham passado por violência física ou psicológica.
Para denunciar casos de violência contra crianças e adolescentes ligue 100. Mais informações podem ser obtidas no site da Secretaria de Direitos Humanos.