Há uma lacuna na formação de grande parte dos professores referente à inclusão de alunos especiais em sala de aula. Em homenagem ao mês de consciência sobre o autismo, a AUN investiga a situação especialmente emblemática do ensino de estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), sujeitos cujo desempenho intelectual varia do baixo ao alto rendimento, o que exige de educadores e coordenadores pedagógicos a adaptação do material didático de acordo com as particularidades de cada um desses alunos. Essa cultura de inclusão, no entanto, é precária em boa parte das escolas e torna o ingresso e permanência do estudante autista um grande desafio para sua família.
Nadia Duarte, diarista mineira e mãe de Pedro, um autista de 9 anos e com alto rendimento, conta que o filho tem as melhores notas da sala e que se interessa por tudo que tenha a ver com plantas, animais e livros. Na hora do filho ser avaliado, Nadia pediu à professora de Pedro que o fizesse oralmente, visto que ele não consegue se expressar muito bem através da escrita, ainda que memorize boa parte do conteúdo. Outra demanda para a inclusão de Pedro na escola é que seu único amiguinho caia sempre na mesma sala e que também fique próximo de uma das monitoras, a única funcionária que sabe lidar com Pedro, de acordo com a mãe.
Para Daniely Tragino, dona de casa recifense, a grande dificuldade também é encontrar funcionários que saibam tratar seu filho Ramon Miguel, autista de três anos e dois meses que está matriculado em uma creche. Daniely e outras mães da região tiveram que recorrer à Prefeitura para solicitar profissionais que cuidem de suas crianças.
Vivendo o outro lado desse cotidiano, a coordenadora pedagógica Eliane Candida Pereira defendeu sua dissertação de mestrado em março deste ano, na Faculdade de Educação da USP, intitulada “Os processos formativos do professor de alunos com Transtorno do Espectro Autista: contribuições da Teoria Histórico-Cultural”.
Pensamento de bases marxistas, a Teoria Histórico-Cultural foi criada no início do século XX pelo psicólogo bielorrusso Lev Vygotsky. Evidenciando a importância das interações sociais no desenvolvimento intelectual dos alunos, ela se opõe ao determinismo biológico que predominava na ciência da época. Eliane analisa sob a ótica desta teoria as estruturas que dificultam o ensino de autistas por professores de escolas regulares, de acordo com o que observou em instituições de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, buscando superar os obstáculos que limitam o exercício, de fato, de uma educação para todos.
“Quando eu atuava como professora da Educação Infantil tive um aluno com diagnóstico de TEA e, assim como outros professores, eu não tinha discussões acumuladas sobre as possibilidades de desenvolver a comunicação com essas crianças”, relembra Eliane. “Então, fui organizando as propostas por ensaio e erro, observando resultados e buscando novas estratégias por conta própria”.
“A qualidade da convivência [com as crianças] depende da estrutura criada para que elas possam desenvolver comunicação, dentro das suas especificidades, podendo manifestar seus desejos, pensamentos, aprendizagens. Cabe o tempo todo um trabalho voltado para o desenvolvimento das máximas potencialidades humanas”, explica a mestra.
Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Adotada pela Associação Americana de Psiquiatria em 2013, a denominação Transtorno do Espectro Autista substituiu o termo “Transtornos Globais de Desenvolvimento” - que incluía, dentre outros distúrbios cognitivos, o autismo - e passou a tratar e diagnosticar os indivíduos autistas com base na intensidade com que apresentam três principais sintomas: a dificuldade de se comunicar verbalmente ou através de expressões corporais, a dificuldade de se socializar - seja não compartilhando sentimentos e gostos ou não conseguindo distinguir pessoas -, e a dificuldade de usar a imaginação - interpretando expressões metafóricas literalmente ou mantendo hábitos repetitivos.
Segundo o último levantamento da agência de saúde norte-americana Centers for Disease Control and Prevention, uma a cada 68 crianças é identificada com TEA e os meninos são 4,5 vezes mais propensos a serem diagnosticados do que as meninas, independentemente de sua etnia ou grupo socioeconômico. Também foi constatado que cerca de 44% dessas crianças apresentam intelecto dentro ou acima da média (QI igual ou maior que 85), 32% estão abaixo da média (diagnosticados com incapacidade intelectual, possuem QI menor que 70) e outros 24% se encontram entre a média e a deficiência intelectual.
Direito garantido por lei
Em dezembro de 2012, foi promulgada a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que visa garantir o incentivo ao diagnóstico precoce, à pesquisa científica, à inserção do autista no mercado de trabalho, à formação de profissionais capacitados para cuidar de pessoas com TEA e ao acesso à escolarização. Consequentemente, toda instituição de ensino deve estar apta a receber esses estudantes.
Além disso, o Plano Nacional da Educação de 2014 lançou novas metas e estratégias para universalizar a escola para o público com deficiências cognitivas entre 4 e 17 anos. “No entanto, não necessariamente os planos estaduais e municipais de educação estão apresentando ações concretas nesse sentido”, revela Eliane. ”Aliás, segundo dados do IBGE em 2014, 56,4% dos municípios afirmaram não possuir um Plano de Educação. Portanto, há muito que se caminhar nas políticas públicas para a garantia desse direito”.
Experiência na sala de aula
Ao analisar a atividade de equipes pedagógicas, Eliane encontrou incoerências entre os discursos sobre a educação inclusiva e a implantação da mesma, afastando famílias como as de Nadia e Daniely do ensino público regular. “Assumindo o papel de orientadora pedagógica, presenciei os sentimentos de impotência de equipes escolares que assistiram, em algumas das situações, as famílias solicitando transferências para escolas especiais, que ainda coexistiam como ensino substitutivo naquela ocasião, numa perspectiva de ‘fracasso da inclusão’”, conta a professora.
A mestra também notou que se faz necessária a reflexão sobre a forma e os conteúdos ensinados aos estudantes autistas. “Para ressignificar a finalidade da atividade de ensino pelos professores de alunos com TEA, cabe a discussão da concepção de educação como instrumento mediador do processo de desenvolvimento humano e a compreensão do papel da constituição da linguagem nesse processo”, conclui Eliane Pereira.