Quando um grupo de mulheres da zona sul de São Paulo se reúne para aprender dança do ventre, há muito mais acontecendo ali do que os olhos podem ver de imediato. É um processo de transformação, que inclui desde a relação daquelas mulheres com o próprio corpo até o nível de participação delas na sociedade.
É o que nota Gina Paola Ardila Osorio em sua dissertação de mestrado, defendida em 2015 na Faculdade de Medicina da USP. Ela passou um ano e meio acompanhando a professora e as alunas, dentro e fora das aulas de dança no Centro de Cidadania da Mulher Santo Amaro (CCM-SA).
Há cinco CCMs no município de São Paulo, em uma iniciativa da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres. Eles oferecem atendimento jurídico e psicológico a mulheres vítimas de violência e promovem diversos cursos, entre eles formação em gênero, violência doméstica, cidadania e políticas públicas — pelo qual todas as mulheres ali têm que passar — yoga, artesanato e as aulas de dança.
Um dos aspectos que a pesquisadora pôde notar no período foi a “ressignificação” do corpo dessas mulheres, que puderam mudar sua visão em relação a ele. “Basicamente, deixavam de pensar que tinham que seguir um padrão de beleza e passavam a se aceitar e a desfrutar do próprio corpo, a fazer dele um templo a se cuidar”, explica Gina.
Esse encontro com elas mesmas está também relacionado ao ambiente do Centro, que fez com que elas pudessem aproveitar mais a dança, encontrando ritmos e afinidades, ao se sentirem acolhidas. Analisada no estudo, a própria professora da turma, que não possuía um estilo de corpo padrão, mas que transmitia autoconfiança, foi uma grande incentivadora das demais.
Foto: Adilson Araújo
A faixa etária do grupo alvo da pesquisa era bem diversa, englobando desde os 34 até os 65 anos de idade. Algumas das mulheres eram donas de casa, outras trabalhavam ou eram aposentadas. Foram realizadas entrevistas individuais com cada uma, nas quais elas relataram a sua trajetória de vida e a maneira como o curso as tocava.
Fora do CCM, Gina acompanhou o ritual de mudança pelo qual elas passavam nas apresentações para o público, o modo como elas, enquanto mulheres “normais”, chegavam da rua e se transformavam em dançarinas. Os momentos de dança eram, assim, quando podiam ser espontâneas e extrovertidas, pois saiam dos papéis de mães, esposas, filhas e de todas as responsabilidades que essas condições pressupõem.
“Esse era o espaço que elas aproveitavam para se encontrar com elas mesmas e socializar em um lugar que não fosse influenciado pelos maridos, pela família. Um espaço só de mulheres. E é legal ver como elas aproveitam desse espaço público e como sentem falta de locais assim, que nem sempre estão disponíveis para elas”, diz a pesquisadora.
Reinserção
Os efeitos da dança, assim, não se limitaram ao plano físico. Muitas mulheres, inclusive, ao entrarem em contato com os Centros, tem a possibilidade de reconhecer relacionamentos abusivos e casos de opressão de gênero para então tomar atitudes frente a eles. O espaço de diálogo, portanto, é um dos pontos que diferencia o trabalho realizado no CCM de uma academia, por exemplo, onde as atividades são muito individualizadas.
Esse é um dos motivos pelos quais a pesquisadora sentiu falta de uma roda de conversa entre as participantes após as aulas de dança do grupo. “As mulheres têm medo de comunicar situações que as atormentam por dentro, que são difíceis, e compartilhar pode ser uma forma de encorajá-las e fazer com que elas saiam de uma situação de violência”, Gina lembra.
Desse modo, os Centros de Cidadania da Mulher são espaços importantes para que as mulheres possam superar obstáculos da desigualdade de gêneros e participar de forma mais ativa nos espaços públicos que, muitas vezes, não estão acessíveis a elas porque a sociedade as nega esse direito. Diminuem, assim, sua vulnerabilidade.
Foto: Gina Ardila
Exemplo disso são algumas iniciativas que as mulheres do CCM-SA tiveram e relatam, como: passar a terminar o ensino médio, entrar na faculdade, ganhar independência financeira, ingressar no mercado de trabalho, além de também possibilitar a geração de renda própria através de costura ou artesanato.
Outro benefício é a melhora da saúde física e mental, fato analisado pela pesquisadora por meio das falas das dançarinas que argumentaram a importância da prática para o cuidado de doenças e para a integração do cuidado do corpo com o da mente, incidindo positivamente na vida delas. Afinal, muitos problemas de saúde de mulheres podem estar relacionados a fatores emocionais, à vida doméstica, e a sua falta de conhecimento do próprio corpo, precisando de uma atenção especializada.
No entanto, os próprios Centros, em seu número reduzido, não atendem a demanda da comunidade, que, aliás, possui pouco conhecimento de sua existência. Muitas mulheres estudam, trabalham, cuidam dos filhos e, portanto, não têm tempo disponível para conhecer esses espaços. “A Secretaria e a Prefeitura poderiam oferecer mais desses espaços, que às vezes estão isolados e com poucas participantes. Todo investimento é bem-vindo para reativar essa inserção das mulheres na sociedade, encorajá-las, empoderá-las”, defende Gina.