“Não há um jeito certo de se discutir racismo, é só olhar ao seu redor. Ou melhor, ao redor de uma criança negra. Ela não é tratada de igual para igual. Aí que começa o problema”, afirma Raquel Vasconcellos, professora negra de educação artística da rede pública de educação básica do Rio de Janeiro. “Apesar de, no dia-a-dia, não se levar em consideração as questões étnico-raciais das crianças, o tempo todo acontecem situações em que elas precisam se posicionar de alguma maneira sobre isso”, declara.
Visto a urgência de tratar do assunto, a socióloga Ana Carolina Farias defendeu sua dissertação de mestrado sobre o preconceito vivido por crianças negras de 4 e 5 anos de uma EMEI do bairro do Jaguaré, na zona oeste de São Paulo, através dos desenhos feitos por elas. A pesquisadora examinou como as crianças são envolvidas pela sociedade e como externam o jeito que entendem o mundo.
“Tentei compreender essa questão pelos olhos delas, pelos desenhos, pelas expressões e pelas relações entre elas”, explica Ana Carolina, que afirma que, por estarem em uma sociedade racista, elas são permeadas por esse preconceito.
Mesmo que os adultos não notem essas relações, a dissertação revelou padrões de falta de representatividade e de orgulho da identidade negra. O título da própria pesquisa, “Loira você fica muito mais bonita”, entrega de antemão os estereótipos com os quais as crianças lidam diariamente. A frase foi dita por uma menina que retratou a pesquisadora com fios loiros nos desenhos, mesmo que Ana Carolina não os tenha.
Raízes do problema sentidas na escola
A pesquisadora aponta a mídia, a sociedade e a escola como principais reprodutores do racismo.
Na esfera da educação, o não cumprimento da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afrobrasileira, é um obstáculo para a discussão do preconceito racial no Brasil.
Raquel é uma das poucas educadoras que usa esse conteúdo regularmente em sala de aula. “Tento desvincular [a imagem do] o negro descendente de escravo, porque aqui só se fala de negro assim. Não se exalta os reis e rainhas. Por isso, trago textos e livros que mostrem isso. Que eles não descendem de escravos, e sim de verdadeiros reis e rainhas, e têm os mesmos direitos e deveres que qualquer um”, conta. “As cantigas africanas também são ótimas e me ajudam a introduzir muitos assuntos”.
Na EMEI analisada por Ana Carolina, apenas a classe que participou da pesquisa trabalhava a questão da representatividade. Assim como Raquel, a educadora da turma era negra e se preocupava em apresentar referências étnico-raciais semelhantes aos seus alunos. Ela, por exemplo, compartilhava livros infantis sobre o tema e montava murais com imagens de crianças e artistas negros.
Em matéria publicada pela AUN, uma dissertação concluiu que a convivência e a empatia com pessoas negras são essenciais para que professores brancos também comecem a ensinar a história e cultura afrobrasileira em sala de aula e, assim, crianças negras não dependam da sorte de encontrar um educador que as entenda.
“Ter alguém semelhante a você, que foge dos padrões, que tem a cor de pele e o cabelo como seu, é ter alguém que pode entender a sua vivência e a sua dor. E isso pode explicar até o nível de intimidade do aluno conosco”, nota Raquel. “Há alunos que são tímidos nas aulas normais, mas nas minhas aulas [de artes] se sentem à vontade para expressar suas opiniões, discordar e ainda fazer análises de possíveis soluções para diversos problemas do cotidiano escolar”, observa.
Essa questão perpassa também o reconhecimento e aceitação da cor da pele por parte dos adultos, a autodeclaração.
Dos 16 professores da escola de Raquel, metade são negros, mas apenas três se declaram como tal. “Se nem nós, que somos os exemplos, conseguimos nos enxergar como o que nós somos, como podemos mostrar representatividade aos alunos? Isso dificulta o meu trabalho, que está na contramão disso”, critica.
Ana Carolina percebeu a mesma falta de representatividade nas fichas de matrícula das famílias das crianças analisadas: 15 se declararam brancas, 14 não se declararam e 5 se declararam pardas.
Em sociedade: o machismo no racismo
Na mídia e em sociedade, outras esferas que a pesquisadora considera responsáveis pela perpetuação do racismo, foi notada a cobrança de padrões de beleza que marginalizam a diversidade de cores e formas da mulher. Nos arredores da escola, Ana Carolina mapeou os salões de beleza e observou a parcialidade desses padrões, que excluem a mulher negra e o cabelo crespo.
Fachada de salões de beleza próximos à escola analisada revela branquitude dos padrões de beleza. Fotos: Ana Carolina Batista de Almeida Faria
A partir desse levantamento, a pesquisadora justifica o comportamento das meninas na escola, que revela um recorte de gênero dentro da vivência do racismo. Na brinquedoteca, os brinquedos mais disputados eram o secador e a chapinha, e a brincadeira mais frequente era a de cabeleireira.
Padrões estéticos eurocêntricos foram observados também nos desenhos. Entre as 192 ilustrações recolhidas, apenas três tinham a pele dos retratados pintada de marrom, sendo duas de uma mesma garota, que “parecia já ter resolvido essa questão [da cor da pele]” e adorava sua cor, conta Ana Carolina.
A pesquisadora duvida que as crianças não tenham pintado o preenchimento da pele do tom de suas cores por falta de tempo ou descuido. “Há essa questão da neutralidade, do papel branco ser considerado neutro, normal e comum. E o que me chama a atenção foi exatamente isso, a ausência da representatividade dentro do que é considerado normal”, avalia Ana Carolina.
Além da pele pouco representada, 92 desenhos possuíam cabelo com traçado liso.
Nas aulas de educação artística de Raquel, a professora observa que também “são raros os [alunos] que se representam como são. Sempre usam o tradicional ‘cor de pele’, que é rosa, e com um cabelo que não se parece nada com o deles. Meninas, principalmente, tem relutância na aceitação. Há uma padronização muito difícil de ser quebrada".
Racismo não vê idade nem classe social
Para quem ainda não conseguir imaginar que tamanha opressão possa existir entre os pequenos, vale lembrar que, em 2014, a filha da milionária cantora Beyoncé, Blue Ivy, foi vítima de racismo quando tinha apenas dois anos. Jasmine Toliver, uma cidadã nova-iorquina, criou a petição Comb her hair (Penteie os cabelos dela, em português) acusando a cantora e seu marido de “falharem em inúmeras tentativas de arrumar o cabelo de Blue”, pois o cabelo da menina estava penteado em dreads, estética de origem africana. O abaixo-assinado atingiu 5.770 apoiadores apesar da discussão e repúdio ao ato de racismo velado.
Beyoncé comentou o caso em seu novo álbum, Lemonade, que é dedicado à valorização do negro e toca em temas que variam do padrão de beleza imposto às mulheres negras até a violência policial nos Estados Unidos.
No primeiro single de seu último álbum, Beyoncé comenta o episódio de racismo contra sua filha: “Eu gosto da minha pequena herdeira com cabelo de bebê e afros”. Fonte: Awesomely Luvvie
“Ninguém ensina ao negro a se amar. Eles precisam de bons exemplos que os representem, que sejam gente deles, que façam parte, que estejam com e por eles”, afirma Raquel, apesar de não sentir boa vontade da mídia em modificar a imagem do negro ou dar espaço à ele.
No Brasil, a pré-adolescente carioca Mc Soffia também enfrenta o racismo por meio da música. Seu primeiro single, Menina Pretinha, problematiza a falta de representatividade na infância a partir do que é considerado belo e passado para as meninas através de suas bonecas. “Representatividade cai além da inspiração e atinge a autonomia e identidade da criança. Muitas meninas e meninos alisam seus cabelos e tentam adotar características de outras etnias pela não aceitação de suas características raciais”, diz Raquel.
Bonecas que refletem a alma (do racismo)
Ao perceber a impopularidade da Barbie causada pela falta de representatividade, a Matel anunciou em janeiro o lançamento de bonecas com sete tons de pele e 24 estilos de cabelo diferentes, além de também diversificar as cores dos olhos e os tipos de corpo.
A relevância das bonecas na formação de meninas não vem de hoje e ainda mais antigo é o significado negativo que a cor preta carrega. Na década de 1940, o casal de psicólogos e ativistas afro-americanos Kenneth e Mamie Clark criaram um teste no qual crianças eram questionadas sobre o caráter de bonecos brancos e negros. Esse teste foi reproduzido em 2010 por uma campanha contra o racismo no México e foi destaque nas redes sociais.
O resultado refletiu que, mesmo que se tratassem de brinquedos, os bonecos de pele branca eram melhor avaliados pelas crianças e, mesmo que elas fossem claramente descendentes de negros ou indígenas, elas se consideravam parecidas com o brinquedo de pele clara, que tinha as melhores qualidades.
Comportamento semelhante pode ser observado durante a pesquisa de Ana Carolina. Ao mostrar para as crianças um desenho de uma colega que se representou ao lado de personagens do filme Frozen, as crianças identificaram a ilustração de uma garota de cabelos loiros e lisos como a representação de uma princesa, e a de cabelos escuros e cacheados, uma bruxa.
Menina se representa ao lado de personagens de animação da Disney e sofre racismo. Fonte: dissertação de mestrado de Ana Carolina Farias
No mesmo ano da enquete mexicana, a Unicef realizou no Brasil o levantamento “O impacto do Racismo na Infância”, revelando as condições de vida e de autoestima de jovens negros e indígenas, que formam 54,5% da população infantil, equivalente a 31 milhões de meninas e meninos negros e 140 mil crianças indígenas.
Segundo a investigação, no Brasil, as crianças negras têm 70% de chances a mais de serem pobres do que a criança branca e 30% de não frequentarem a escola. Além disso, também são as maiores vítimas de exploração sexual.