Desde a redemocratização, os diversos movimentos sociais que atuam no Brasil aumentaram sua influência na esfera legislativa, não só de forma indireta, mas também com a eleição de representantes desses grupos para as assembleias e câmaras do país. Paralelamente, os mecanismos que possibilitam o acesso dos movimentos sociais ao Judiciário também se multiplicaram. Nesse âmbito, uma das mais importantes reformas que a Constituição estabeleceu foi a instituição da Defensoria Pública.
A relação entre a criação e a efetivação desse órgão e o acréscimo de acesso à justiça obtido pelos movimentos sociais é o tema de mestrado realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo por Caio Santiago Fernandes Santos. Para o pesquisador, o atendimento da Defensoria aos movimentos sociais promove uma "paridade de armas" entre esses grupos e as empresas e governos nas disputas jurídicas.
“Crise de eficácia”
Durante o período da ditadura militar, havia forte repressão e criminalização dos movimentos sociais, que não participavam ativamente da produção legislativa à época. Segundo o pesquisador, no contexto do regime, “os movimentos sociais desempenhavam sobretudo o importante papel de crítica da legislação autoritária e do Judiciário”.
Já no período da redemocratização, além da crítica ao status quo, passou a ocorrer uma “crise de eficácia” do direito estatal em casos relacionados aos movimentos sociais. Especialmente na década de 1980, esses grupos passaram a descumprir decisões judiciais que consideravam ilegítimas, contando com o respaldo da sociedade.
“É o que acontecia em greves que eram declaradas ilegais pelo Judiciário, mas que mesmo assim continuavam. [...] De modo semelhante, ordens judiciais de reintegração de posse em ocupações coletivas de imóveis, rurais e urbanos, também não eram cumpridas pelos movimentos sociais. [...] Em suma, a legitimidade do Judiciário ficou seriamente abalada nesses casos, conforme diagnóstico de autores da época”, explica Santos.
Lei Complementar 132/2009
Antes da criação e consolidação das defensorias públicas no território brasileiro ― que encaminharam-se especialmente com a Constituição de 1988 ―, o principal apoio jurídico que os movimentos sociais recebiam partia de advogados organizados em grupos de assessoria jurídica popular. Para além da assistência jurídica nos casos concretos, esses grupos também promoviam ações extrajudiciais, com educação popular e em direitos para os movimentos sociais. Segundo o pesquisador, “esses profissionais foram responsáveis por criar um novo modelo de serviço legal voltado para as demandas e dinâmica de movimentos sociais”.
Em sua tese de mestrado, Santos sustenta que a Lei Complementar 132 de 2009, que alterou o modelo institucional da Defensoria Pública, aproximou o órgão da função exercida pela assessoria jurídica popular. “[A partir da LC 132/2009] a Defensoria Pública pode atuar não só em conflitos individuais comuns, mas também em conflitos coletivos, combinando uma atuação judicial e extrajudicial, estimulando a participação e educação em direitos dos grupos atendidos, ter uma postura pró-ativa, e assim por diante. Tudo isso são formas de atuação com movimentos sociais originalmente adotadas por grupos de assessoria jurídica popular”, defende o pesquisador.
Ampliação do acesso à Justiça
Com o fortalecimento dos movimentos sociais nas últimas décadas, muitos desses grupos já contam com seus corpos de advogados próprios. Apesar do avanço organizacional, Santos sustenta que a Defensoria Pública ainda tem papel de extrema relevância na defesa dos interesses dos movimentos sociais, graças a sua prerrogativa de ajuizar uma ação civil pública. Segundo o pesquisador, o instrumento “se trata de um dos principais mecanismos processuais para defesa de interesses coletivos e difusos no Judiciário”.
Além do mecanismo, a Defensoria Pública também amplia o acesso à Justiça ao atender movimentos sociais que, por se formarem de maneira espontânea e sem uma organização perene, não contam com um corpo de advogados. “É o que acontece muitas vezes com movimentos sociais que surgem em torno da ocupação espontânea de imóvel abandonado, mas que com o passar do tempo correm o risco de sofrerem reintegração de posse. [...] A Defensoria Pública pode ter uma atuação decisiva nesses casos, como aconteceu por exemplo na Ação Cautelar 4.085 no STF, ajuizada pela Defensoria de São Paulo”, explica Santos. Em janeiro desse ano, o ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski, suspendeu a ordem de reintegração de posse da Vila Soma, uma área em Sumaré (SP) ocupada por mais de duas mil famílias.
A dissertação de mestrado aponta que o atendimento da Defensoria aos movimentos sociais reduz o déficit de força jurídica que esses grupos possuem em relação aos governos e as empresas. Para o pesquisador, “na ausência da Defensoria Pública, o Judiciário tende a reproduzir desigualdades sociais, em razão das enormes diferenças de acesso a serviços legais de diferentes grupos”.