“Imagina que nós estamos em 66”, propõe a pesquisadora Miriam Bevilacqua, eloquente, “dois anos depois do golpe, e aparece um rapaz moreno, de olhos verdes, lindo.” Entre outros atributos, objetivamente ele é também filho de Sergio Buarque de Holanda, historiador destacado da Universidade de São Paulo e autor do clássico “Raízes do Brasil”. O rapaz, carioca, cursou durante apenas dois anos, de 1963 a 1965, Arquitetura na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) antes de crescer para cantar a página infeliz da história brasileira e tornar-se cânone da música popular. De nome Francisco Buarque de Holanda, está hoje com 72 anos, almejava mesmo ser escritor e entrou nas canções por acidente.
Defendida em 2014 no Departamento de Literatura Brasileira da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), a tese de Bevilacqua toma a figura de Chico Buarque como ele desejava, ao menos no começo da vida, ser recordado ao seu fim: um cronista. Ou, como se inscreve no título de seu doutorado, um “avaliador da cotidianidade”. Textos breves e que aludem a fatos de uma determinada época, como podem ser as letras de música, se enquadram nas produções típicas de cronistas, ocupação consagrada no Brasil por autores como Machado de Assis - tema do mestrado da estudiosa -, Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga. E, na opinião da pesquisadora, também por Chico, cujas composições, “que, se você pega uma letra e tira o refrão, pode botar num jornal”, correspondem a crônicas.
A pesquisa de Bevilacqua observa que, desde cedo em sua vida, Chico Buarque inclinava-se ao ofício de escritor. Segundo a doutora, as crônicas realizadas pelo músico no colégio Santa Cruz — que foram analisadas no trabalho —, em Pinheiros, zona oeste paulistana, quando ainda um adolescente, indicam o apuro com a linguagem. O deslumbramento por importantes cronistas da época, como Braga e Drummond, fizeram-no apaixonar-se particularmente pelo formato sucinto e leve de texto. “Ele queria ser cronista e repete isso em várias oportunidades”, afirma ela. “A trajetória de Chico é a carreira de um escritor que foi interrompida para ser músico.”
Ainda que tenha ficado claro o seu desejo de se tornar cronista, Chico Buarque reatou com a vida de literato ao escrever romances, a partir dos anos 1990, com livros que depois lhe faturaram prêmios no Brasil e no exterior. Sua obra Leite Derramado (2009) ganhou o Jabuti, maior prêmio da literatura nacional, no ano seguinte ao seu lançamento, tendo vencido também o Portugal Telecom, no mesmo 2010.
De Braga a Buarque
O trabalho de Bevilacqua originou-se após a leitura de uma crônica de Braga, na qual o escritor afirmava que a canção “A Banda”, de Chico Buarque — que lhe venceu o Festival da Record em 1966 —, correspondia a uma crônica. Imediatamente nesse momento, pôs de lado a ideia anterior, de pesquisar as clássicas crônicas do capixaba, falecido há mais de duas décadas e que deixou atrás de si uma extensa obra literária publicada.
Uma das crônicas de Chico Buarque quando ainda jovem. (Imagem presente na tese)
“Achei que este projeto era mais inédito e comecei por esta linha”, diz. Essa proposta elucidaria que Chico, mais do que qualquer outro letrista musical, tinha seu repertório dedicado a captar o cotidiano e os hábitos de um povo. Uma das hipóteses iniciais do trabalho era provar que a letra de uma canção, por assim dizer, poderia ser uma crônica mesmo que não estivesse apoiada sobre o suporte de jornal.
E ela comprovou-se. Como observa a pesquisadora, também jornalista de formação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o comprometimento das letras buarqueanas com a realidade, bem como a seleção das temáticas de suas músicas, fotografam o dia a dia de uma sociedade e seus costumes, outorgando-lhe o papel de retratista. E com fidelidade. “Ele é um avaliador fiel de nossa cotidianidade”, aponta Bevilacqua. “Não diria o melhor do meio político ou acadêmico, mas do musical, sim.”
O mito
Em seu decorrer, a tese de Bevilacqua analisa também a construção da imagem de Chico Buarque através da imprensa. Para tanto, coletou materiais de revistas como Veja, Realidade e Intervalo e do jornal O Estado de S. Paulo durante os anos de 1966 e 1976. De acordo com ela, Chico, “que era aquilo que todos queriam na época”, como todo bom mito, contém algumas verdades absolutas a lhe rondar.
A primeira delas a se insinuar no senso comum teria sido a música de contestação como matéria predominante na carreira do artista. “O forte dele era o cotidiano”, conta ela. “Na época da ditadura, ele falou daquele cotidiano. Após a ditadura, acabou a ditadura. Então, o peso político na canção dele também se esvazia”, argumenta ela, rebatendo tal percepção.
A pesquisadora também descontrói o consenso de que os eu líricos buarqueanos sejam femininos. Segundo ela, isso ocorria normalmente quando o músico escrevia para peças teatrais e personagens femininos, mas é uma exceção em sua obra cancioneira. “O grosso dele é o narrador masculino”, finaliza.