ISSN 2359-5191

01/07/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 88 - Sociedade - Instituto de Psicologia
Estudo avalia as funções da religião nas missões de paz brasileiras no Haiti
A prática é um dos métodos no processo de enfrentamento nas situações de estresse vividas pelos militares
As religiões cristãs são as mais comuns entre os brasileiros

Uma das práticas da ONU de auxílio a países vítimas de crises sociais, econômicas, políticas e, como no caso do Haiti em 2010, de desastres naturais, é o envio das missões de paz. O Brasil é um dos países membros que envia tropas militares a fim de dar sustento e ajuda a uma possível reestruturação do país. Entre 2011 e 2012, assim como entre 2013 e 2014, o Exército Brasileiro participou dos contigentes 15 e 19, respectivamente.

Analisando que a ocasião seria uma boa oportunidade de estudar modos de enfrentamento de estresse dos peacekeepers (guardiães da paz), o pesquisador e psicólogo André Gonçalves Mellagi baseou sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da USP, no estudo sobre o assunto, participando do contingente 19 na função de psicólogo do batalhão brasileiro.

Dentre os desafios vividos pelos militares estão a adaptação às regras de engajamento da ONU nas missões de paz. O princípios consistem em um casamento de consentimentos de cada parte, assim como na imparcialidade e o não uso da força (exceto em autodefesa), ou seja, a contenção de toda e qualquer agressividade. Sobre tal ponto, Mellagi colocou: “Para um militar treinado para as operações de guerra, o ambiente das missões de paz impõe o desafio de aplicar uma ação incisiva mas não violenta, uma vez que não há um inimigo claro como existe nas batalhas tradicionais. O ambiente incerto e o risco de insurgência por parte de grupos armados fazem com que cada decisão seja cuidadosamente tomada, sob risco de deflagrar ainda mais a instabilidade no país que recebe este tipo de missão.”

A adoção de novas regras se somam a outros fatores, como o próprio risco das operações, o confinamento em um país de cultura e costumes desconhecidos e a distância da família. Considerando o cenário, é inegável que cada sujeito busque maneiras diversas de enfrentar o estresse das situações, e uma das mais comuns é pela religião. A partir de tal observação, André dedicou seu estudo ao coping (enfrentamento) religioso.

A análise

O método consistiu em primeira instância numa análise quantitativa, na qual os participantes eram incumbidos de preencher um formulário com dados básicos, incluindo patente, escolaridade e religião, por exemplo. Foi observado que a grande maioria pertencia a crença católica ou evangélica pentecostal. Além disso, escalas de enfrentamento e do coping religioso também entraram na análise quantitativa. Qualitativamente foram aderidos os relatos de capelães militares que participaram de alguma missão no Haiti.   

Uma das primeiras conclusões ao avaliar os grupos foi a de que o modo de enfrentamento era focado no problema, e não na emoção. Sobre o assunto, André comentou: “O modo focado no problema lida diretamente na resolução do agente estressor, ao contrário do modo focado na emoção, que lida com as emoções que o estressor provoca”. Porém, a pesquisa deixou claro que, num âmbito geral, o enfrentamento religioso pode ser focado nos dois pontos. A diferença deste tipo de coping é a agregação da dimensão do sagrado nas estratégias de enfrentamento.

No decorrer do estudo foi analisado qual foi o efeito da religião na vida de cada indivíduo, dividindo-se em dois resultados: o coping negativo e o positivo. O primeiro consiste na resiliência do indivíduo (recuperação de seu bem-estar) numa situação de crise, como derivação da adoção de suas crenças espirituais. “Por exemplo, ressignificar o estressor de maneira que encontre sentido na situação que o indivíduo esteja vivendo, ter confiança no apoio divino ao agir para mudar essa situação de crise”, apontou o pesquisador. Enquanto isso, o negativo tem efeito contrário, como destacou André:  “Fatores de coping religioso negativo, por sua vez, acabam agravando a crise ao adicionar outros estressores, tais como a percepção de alguma entidade demoníaca que persegue o indivíduo, de alguma punição divina que esteja sofrendo por parte seus atos, ou pela ausência de ação para lidar com o estressor ao delegar a responsabilidade somente a Deus.”

A análise dos católicos demonstrou que o coping de apoio social foi utilizado, assim como o religioso, porém, em menor escala se comparado aos evangélicos pentecostais. No segundo grupo poderia acontecer de ambas as vertentes, positivas e negativas do enfrentamento religioso, se expressarem no mesmo indivíduo, como explicou o psicólogo: “Tanto os fatores positivos quanto negativos foram mais frequentes do que entre os católicos. Por exemplo, fatores positivos ligados à interpretação da situação através da leitura bíblica e fatores negativos ligados à percepção de agência de entidades malignas foram mais proeminentes entre evangélicos do que entre católicos.”

Uma das maneiras em que o espiritual pode ser benéfico ao indivíduo, ou seja, um coping positivo, é amenizando a instabilidade vivida por ele ao criar e manter o sentido inerente às suas crenças globais. A ambientação das missões de paz, somada a seus fatores estressores e problemas deixados em seu país de origem, desafiam a decisão do voluntariado de participar da missão, colocando suas motivações e expectativas em xeque. “Quando a situação de crise se agrava e confronta o sistema de orientação do indivíduo, permeado por suas crenças pessoais, há uma discrepância entre o sentido situacional e o sentido global”, colocou o pesquisador. Neste ponto, a religião pode beneficiar ao diminuir essa discrepância, mesmo que tenha que rever seus valores prévios. No caso contrário pode ser prejudicial caso dilate tal discrepância, aumentando a sensação de incerteza. Como no estudo o coping positivo foi mais frequente, pode-se concluir que a religião foi mais benéfica do que prejudicial.

O entendimento do papel da religião pode servir como auxílio aos responsáveis pela saúde dos militares. Por exemplo, caso a religião tenha alto valor para o indivíduo, suas ações perante uma crise ou doença podem ser influenciadas pelo sagrado, interferindo nas maneiras em que ele adere a um tratamento ou nas buscas de atendimentos alternativos. “Considerar a miríade de formas que a religião desempenha no processo de enfrentamento capacitará aos profissionais de saúde e aos capelães militares uma melhor compreensão sobre os sentidos resilientes ou vulneráveis que os militares levam à missão”, colocou o psicólogo.

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