“Silêncio
O sambista está dormindo
Ele foi mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escolas eu peço o silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de Pato n'água emudeceu”
A canção Silêncio no Bexiga, escrita por Geraldo Filme, relata a morte de Pato n’Água, apitador de bateria da Vai-Vai, escola de samba que ajudou a fundar no Bexiga. A canção está no álbum Plínio Marcos em Prosa e Samba com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro, e é objeto de pesquisa do historiador Lucas Tadeu Marchezin, pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Uma de suas hipóteses é a invisibilização de alguns personagens, como a do sambista em São Paulo, considerando sua classe social e sua negritude, como observamos no verso “e é mais um que foi sem dizer adeus”. Para comprovar essa hipótese, Lucas analisa não só a letra das canções, mas também a forma de cantar, a estrutura melódica e rítmica, assim como as intervenções de Plínio Marcos entre as canções.
A proposta inicial de Marchezin vem do nome original da pesquisa: a ideia de estudar a história do samba em São Paulo e sua formação. Esse recorte tem a ver com sua formação como historiador. Entretanto, no decorrer de sua pesquisa encontrou outros pontos interessantes além do estudo da construção histórica, uma vez que a marginalização do samba paulista frente ao carioca deriva também da imagem que a cidade construiu para si: a cidade do progresso e do trabalho, sem se mencionar que esse desenvolvimento nasce da intensificação das desigualdades sociais urbanas. Assim, há não somente um silenciamento do samba de São Paulo, mas também dos seus agentes de produção. A alteração se deu também no título da pesquisa: de Os bambas da Pauliceia: o samba e os espaços de sociabilidade populares na cidade de São Paulo para Um samba nas quebradas do mundaréu: a história do samba paulista na voz de Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro e Plínio Marcos (veja matéria publicada anteriormente pela AUN).
O narrador e os silenciados
Plínio Marcos, que assume papel de narrador, ganha um protagonismo que o coloca à frente dos demais. Por isso, o pesquisador busca entender como os outros sambistas aparecem na obra, encontrando pistas nas análises dos trechos musicais que refletem experiências deles, uma vez que a estrutura rítmica e a melodia também são encaradas como forma de fala. “Existe um protagonismo e um silenciamento, isso são partes de um mesmo problema, tem a ver com o fato da gente viver numa sociedade estruturalmente racista e de classes, é preciso fazer essa crítica, mas também é preciso pensar como a voz desses sambistas aparecem na obra'”, explica.
A problemática vem do protagonismo conferido a Plínio, artista branco, e da posição secundária conferida aos sambistas, sobretudo pela crítica. Geraldo, por exemplo, participava dos eventos do Teatro Popular Brasileiro, organizado por Solano Trindade, que tinha forte atuação no movimento negro e no Partido Comunista, e trazia essa experiência temática nas suas canções. Marchezin entrevistou Raquel Trindade, filha de Solano, com quem pode confirmar o mote do dramaturgo: “pesquisar na fonte e devolver ao povo na forma de arte”. Tal pensamento casa com sua pesquisa, uma vez que esses eventos em espaços próprios dessa cultura reforçavam os espaços de sociabilidade, que possibilitavam a discussão dessa problemática e da criação de encontros como os de Geraldo. Desde modo, o sambista pôde registrar no álbum o que é ser negro dentro de uma perspectiva de transformação social em São Paulo, explicitando não só a cultura popular negra mas também esse processo de transformação.
Documentário O Legado de Solano Trindade
Na mesma linha, Zeca da Casa Verde e, principalmente, Toniquinho também são estudados. Uma vez que o ritmo paulista tem origens no interior, as referências rurais e elementos como o samba de bumbo encontrados na obra tem grande importância para a construção da narrativa musical e de marcos na cultura popular.
A criação de espaços e memórias em São Paulo
Lucas também trabalha na articulação entre uma memória histórica e uma memória coletiva, fundada a partir da experiência de grupos distintos e suas relações com o universo do samba, e como esses elementos se mesclam na construção de uma memória social sobre o samba de São Paulo, trazendo a discussão sobre a existência de um samba tipicamente paulista, diferente do carioca, com origem própria (das manifestações rurais), que se relaciona com determinadas experiências históricas, como a cena cultural na região de Embu das Artes.
Atualmente, de acordo com Marchezin, existem diversos espaços de sociabilidades da cultura negra, ilustradas, por exemplo, nas diversas escolas de sambas em diferentes regiões da cidade, o que mostra que essa temática não se prende somente à década de 70, na criação do álbum ou na oficialização do Carnaval paulista. "No fundo o que torna mais interessante toda essa discussão é pensar que essa discussão sobre a história do samba na cidade de São Paulo, as perspectivas dessa história ‒ que são perspectivas sobre a cidade, sobre o que é ser pobre e periférico, sobre o que é ser negro ‒ não é uma questão que deixou de existir, isso está em pauta ainda”, explica. “E essa memória social do samba não é só construída por aqueles que pesquisaram, mas também pelos seus agentes, é nessa relação que se constrói a memória, e isso ainda está em jogo".