A diversidade do termo “família” favorece a ampliação de perspectivas sobre a formação e a continuidade de movimentos de moradia. Essa conclusão tira Carlos Filadelfo, que investigou, em seu estudo de doutorado, o Movimento dos Sem Terra Leste 1 na região de Tiradentes, zona leste paulistana, durante 30 meses. Segundo ele, a expressão “família” é a pedra basilar que sustenta movimentos reivindicadores de habitações públicas, mantendo com eles uma relação dialética, às vezes “sem saber o que é família e o que é movimento”.
“Família é uma unidade social e política”, pontua ele. “Mas, ao mesmo tempo, é também uma unidade de intervenção estatal.” Desta forma, ele reconhece a importância que o vocábulo carrega para programas de políticas habitacionais — mais notadamente, o Minha Casa, Minha Vida, instituído no primeiro mandato Dilma —, que empregam a noção de família para decidir quais os usufrutuários do benefício. Isso cria, de acordo com sua percepção, uma relação triangular entre família, Estado e movimento social, com implicações mútuas entre si.
A tese, de nome A luta está no sangue: família, política e movimentos de moradias em São Paulo, foi defendida em 2015 e apresenta um catálogo com variadas noções acerca da expressão. Não se trata, contudo, de expor um glossário contendo definições rígidas, mas analisar os contextos em que elas ocorrem de modo dinâmico e processual. Falar de família, como diz ele, é lidar com ideias de união e ruptura, relacionando seu significado ao andar do movimento, que determina o que é família por estabelecer regras de cadastro e incorporação. “Ela pode ser formada por uma única pessoa”, diz ele, no caso de um indivíduo em particular ingressar no movimento e ser ativo em seu interior, ainda que depois venham morar com ele outras pessoas. “Antigamente, o Estado priorizava casais com filhos, mas, atualmente, ela pode ser feita de casais sem filhos, pode ser de solteiros, pessoas LGBTs”, afirma.
Filadelfo menciona também que, ao influenciar a noção de família, Estado e movimento social (de moradia, no caso) atribuíram “novos” papéis a homem e mulher quanto à responsabilidade do lar. No tocante da titularidade da casa, ocupação de responsabilidade emitida pela burocracia dos movimentos de moradia, a mulher tem sido escolhida em detrimento do homem, que tempos atrás assumia o posto em função de sua renda, já que normalmente desempenhava funções assalariadas não relacionados à casa. Hoje, independentemente da situação econômica de um ou de outro, a mulher é a ocupante de tal posição. Isso, segundo ele, é fruto das questões culturais de gênero, que associam a figura feminina ao lar e os filhos.
“Então, a todo o tempo”, argumenta Filadelfo, “o Estado está julgando o que é família e o que não é”. Da parte do movimento social, por outro lado, aspectos vinculados ao léxico, presentes em discursos e práticas cotidianas, fornecem uma ideia do que é família. “A conclusão imediata é de que “família” é polissêmico — é formada pela afinidade, consanguinidade, proximidade afetiva, convivência, passar por momentos difíceis juntos, por conflitos.”
Um outro resultado foi o de que entender o movimento através da chave da família põe em jogo questões próprias da moralidade de cada núcleo familiar, não sendo observado sob o prisma de “apenas” um movimento político. Para o pesquisador, a relevância de seu trabalho é justamente resgatar os significados para dar uma nova visão ao movimento de moradia. “A perspectiva das famílias importa justamente para ver quem são as pessoas que reproduzem o movimento, porque ele é composto por elas”, arremata ele.