São Paulo (AUN - USP) - Pensar a razão de atos violentos tendo a violência como um valor, que pode ser legitimado pela moral. De acordo com o psicólogo e professor da USP, Yves de La Taille, somente assim a psicologia moral conseguirá compreender as ações violentas do ser humano. Ele aponta dois principais erros que psicólogos e leigos cometem ao pensar a violência. “Em primeiro lugar, é comum uma patologização dos atos violentos”, ou seja, ser violento seria uma espécie de doença. Yves dá como exemplo a associação feita entre pessoas violentas e uma infância infeliz. O agressor só atacaria por trazer, dentro de si, o mal-estar da infelicidade. ”É como se estivéssemos de volta à teoria do “bom selvagem” de Rousseau”, comenta o professor. De acordo com o filósofo iluminista Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o “bom selvagem” seria um estado pacífico natural do homem, que é corrompido pelo meio. Ao refutar a hipótese da violência como patologia, Yves é categórico: “Os saudáveis também são violentos”.
Outro engano cometido ao discutir a violência é entendê-la como algo inevitável, natural do ser humano. Esse ponto de vista representa, ao mesmo tempo, uma banalização dos atos violentos e o drama de sermos escravos de nossas tendências a agressão. Segundo o psicólogo, a violência condenável não é algo espontâneo, natural. Ela ocorre somente quando a moral do indivíduo não é capaz de fazer com que ele sinta-se envergonhado de ter cometido o ato violento. Yves ilustra essa idéia com um episódio da vida do escritor francês Albert Camus. Em sua biografia, Camus narra que, um dia, quando estava na escola, recebeu um questionário em que tinha de preencher a profissão da mãe. Jovem pobre, o futuro escritor estudava na escola graças a uma bolsa de estudos. Segundo ele, no momento em que foi escrever que a mãe era dona de casa, sentiu vergonha da profissão materna. Depois, sentiu vergonha de ter sentido vergonha, afinal a mãe sacrificava-se constantemente por ele. O jovem Camus, então, preencheu o campo e entregou o questionário.
Yves explica que a vergonha corresponde à diferença entre aquilo que se é e aquilo que se gostaria de ser. No caso de Camus, a primeira vergonha sentida vem do fato de que era pobre enquanto desejava ser rico. Já a segunda tem relação com sua moral: ele sentiu vergonha de desejar ter dinheiro e, graças a isso, ser injusto com a própria mãe. Isso impediu Camus de mentir sobre a profissão materna e de cometer, devido à mentira, um ato de violência. “A violência condenável tem como fim apenas aquele que a pratica. Quem age moral e respeitosamente respeita a si próprio”, define o psicólogo. Logo, foi por ter pensado na mãe e não em como pareceria diante dos colegas ricos, que Camus não agiu violentamente.
Quando essa “trava” moral falha, o indivíduo não se sente decair ao cometer atos violentos. Ele não percebe isso como um desrespeito a si e chega a sentir orgulho de sua violência. O psicólogo cita três exemplos dessa constatação. No filme “Cidade de Deus”, um dos personagens chega à conclusão de que é bandido para não “ficar comendo marmita”. Isso significa que, para ele, existe uma vergonha em ser operário, mas não em ser bandido. Pelo contrário, a criminalidade melhora sua auto-imagem. Outro exemplo que Yves cita vem do Projeto Travessia, que trabalha com meninos de rua. Perguntados sobre o que lhes causa vergonha, muitos meninos disseram: “A gente sente vergonha porque não existe”. Depois de um tempo, completaram: “Mas as pessoas nos veem, elas tem medo da gente.” A violência então é uma maneira encontrada por tais meninos para fugir da vergonha de não existir. O terceiro exemplo do professor sobre a relação da violência com a moral vem de um trabalho com internos da antiga Febem. Um deles declarou: “Vocês do mundão mentem, mas não matam. A gente mata, mas não mente”. Nesse caso é a mentira, não a violência, que fere a auto-imagem desses jovens. Por isso, ser violento não é imoral, ao passo que mentir é.