São Paulo (AUN - USP) - Na opinião do professor Paulo Endo, professor da disciplina “Psicanálise, política e cultura” do Instituto de Psicologia (IP) da USP, a atual polêmica quanto à presença da Polícia Militar no campus Butantã vai muito além de uma mera discussão sobre as maneiras adotadas para combater a violência. “Existe uma questão mais abrangente nisso, que é o fato de que o Brasil ainda é fortemente atravessado por um traçado militar”, explica. “As nossas forças de recomposição do esgarçamento do tecido social e dos conflitos têm um timbre militar. O Brasil é uma exceção no mundo no que diz respeito aos crimes de lesa-humanidade, pois há uma dificuldade imensa em reconhecer que determinadas atrocidades precisam ser estancadas e precisam ser definitivamente paralisadas”. Para o professor, seria impensável em determinados países nas Américas que uma comissão de verdade destinada a desvendar crimes cometidos durantes a ditadura civil-militar estivesse mais preocupada em não constranger os militares do que puni-los pelas atrocidades cometidas.
A redução da questão à simples escolha entre ser favorável ou contrário à presença da PM no campus não favorece o debate, essencial em um ambiente democrático. “Você começa a criar categorias e você tem que decidir de qual delas você tem mais medo, da polícia, do assaltante ou do maconheiro. Na medida em que você condena alguma coisa, você está aprovando direta ou indiretamente todas as forças que, em teoria, combateriam essa coisa, independente da maneira como elas fariam isso”, afirma Endo. Para ele, o grande problema da atuação da PM é justamente seu caráter militar, cujo preparo ideológico frequentemente não cumpre seu papel de proteção dos civis. “O que a gente tem é uma polícia basicamente criada dentro de uma estrutura militar, que continua atuando militarmente dentro do território nacional. Uma coisa é a policia atuar militarmente numa guerra contra países vizinhos, defendendo suas fronteiras, outra coisa é ela atuar militarmente contra sua população civil desarmada”, comenta, mostrando que a ostentação de poder que predominou no episódio da reintegração de posse da reitoria, ocorrida em 8 de novembro deste ano, não foi um acidente isolado.
Endo realiza pesquisas que englobam psicanálise, teoria política e violência. Uma delas trata de psicanálise e formas contemporâneas do excessivo, que é um conceito importante na compreensão do trauma psíquico. “O trauma em psicanálise é esse ‘quantum’ que produz violência. Violência não é qualidade, é uma quantidade que impacta o psiquismo ou o obriga a trabalhar para dar conta desse excesso”, explica. “O psiquismo trabalha sempre com aquilo que lhe é apresentado, mas, às vezes, ele fracassa”. As formas contemporâneas do excessivo envolvem desde questões como a tortura até mesmo o extermínio de certas camadas da população – no caso do Brasil, principalmente homens entre 17 e 24 anos, negros, pobres e de baixa escolaridade. O professor estuda quais são as consequências psíquicas de se viver em uma sociedade violenta, do ponto de vista da vítima, do agressor e da testemunha que convive com isso.
O uso da violência no sujeito que a vive pode gerar diversas consequências, que podem ir desde traumatismos psíquicos persistentes até medo, pavor, preconceito, ansiedade e depressão. “Talvez a [consequência psíquica] mais severa seja ainda uma dificuldade muito grande das pessoas de maneira geral em reconhecer esses atos de truculência e de violência extrema”, aponta o pesquisador, afirmando que o Brasil ainda não dispõe de mecanismos culturais que evitem que essas violações sejam autorizadas de praxe. O uso institucionalizado e corriqueiro da violência como solução de conflitos traz péssimas consequências para os brasileiros. “Isso se reproduz social e psiquicamente como uma banalização da violência, em todas os campos da experiência, desde a relação entre marido e mulher, até a relação do governo do Estado e um estudante da USP”.
A violência do policial não atinge somente ao civil que é submetido a esse tipo de violação, mas também ao próprio policial, que muitas vezes não tem direito de não ser torturador e corrupto na corporação. O policial militar que tenta ser um bom policial, muitas vezes tem dificuldade de se manter na profissão. “A polícia faz parte da sociedade civil, mas sua ideologia e sua formação é militar: essa é uma cisão que permite ao policial se sentir fora da sociedade civil”, explica. A alternativa da polícia comunitária, que diminui as chances de o policial agir de maneira excessivamente violenta, é uma possibilidade já adotada em muitos países e que previne abusos de poder, uma vez que o que a anomia permite é o evanescimento da alteridade. Endo, entretanto, defende que não há sistema perfeito: “Isso não quer dizer que mesmo nesses casos não haja problema, as polícias comunitárias também apresentam problemas e precisam ser revisadas o tempo todo”.
Para Endo, essa banalização da violência mostra que o atual regime político brasileiro é muito frágil e, por isso, necessita da violência para se manter. “Podemos dizer com muita clareza que nós não temos um ambiente pródigo politicamente falando e que a nossa democracia é extraordinariamente frágil, porque uma democracia onde a persuasão, a linguagem e o debate são colocados à deriva de astúcias e metodologias violentas, ela [a democracia] não se instala, ela não acontece, ela não é transmitida para gerações sucessivas”, esclarece. “Hannah Arendt já nos ensinou que violência é um expediente sempre da debilidade do poder, ao contrário do que a teoria política moderna dizia”, afirma, citando de maneira indireta autores como Hobbes, que afirmavam que o exercício da violência seria legitimado se fosse acompanhada de uma certa dose de poder.
A situação política em que a USP está inserida atualmente é ainda mais propício para polarização das discussões envolvendo o convênio com a Polícia Militar. “É um momento em que as instâncias de poder não suportam as consequências da democracia, então os governos ou reitorias ‘pseudo-democráticas’ não suportam as consequências de ter que governar em um sistema democrático e lançar mão de um instrumento que é por excelência antidemocrático, que é o uso da violência”, opina.
O professor argumenta que a universidade é um espaço privilegiado de reflexão, onde a linguagem deveria pautar as possibilidades de resolução de conflito. “A questão envolve um contexto em que ainda a violência é um expediente de resolução de conflitos”, reflete o docente. Para ele, diferentemente das periferias permanentemente violentadas, a USP é um ambiente acostumado com a democracia, o que faz com que a reação a atitudes violentas seja mais forte e a repressão pelas autoridades autorizadas a usar violência seja mais repressora também. “A partir do momento em que o governante ou o reitor diagnostica que o seu poder está em declínio, não faz mais sentido o debate político, porque no debate político ele será vencido, então o único instrumento plausível para a manutenção do poder é a instituição do medo”.