“Existe uma crise em nosso sistema penitenciário. Fechar os olhos para o que acontece dentro do cárcere significa também fechar os olhos para a violência que persiste fora dele”. Essa frase foi retirada do Manifesto pelo Cárcere Cidadão, desenvolvido pelos estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. O documento foi lido na íntegra durante o Ato pela Humanização do Cárcere, organizado pelo XI de agosto no dia 11 de março, no Salão Nobre da Faculdade.
O evento, que contou com as presenças de Ricardo Lewandowski, ministro do Supremo Tribunal Federal, e de Drauzio Varella, médico e autor de dois livros sobre o sistema carcerário, marca o início da campanha dos estudantes para chamar a atenção da sociedade para as más condições de vida dos presidiários no Brasil. De acordo com os diretores do centro acadêmico, apesar de nascer na Faculdade, o projeto é “uma bandeira de quem quiser levantar”, cujo objetivo é “denunciar um sistema carcerário e uma política criminal falhos”. Para eles, o sistema que existe no Brasil exclui muito mais do que inclui e escolhe quem estará nele: geralmente cidadãos pobres e negros. Os alunos compareceram em massa e muitos colaram em suas roupas adesivos distribuídos pelo centro acadêmico, em que se lia “Eu luto por um cárcere cidadão”.
A importância de os estudantes estarem tomando a iniciativa de realizar uma campanha pela humanização do cárcere foi destacada por José Afonso da Silva, professor da casa, que se disse “otimista” ao ver a comunidade acadêmica tomando a frente, num cenário em que as penas alternativas ainda não são suficientemente desenvolvidas para serem implantadas.
Lewandowski foi o primeiro dos convidados a falar e enfatizou, em seu discurso, que “o preso é, antes de tudo, um cidadão” e, portanto, merece ser tratado como tal. Ele “perde, temporariamente, alguns direitos”, entre os quais não se inclui o direito à dignidade humana. Ao fazer um retrospecto da história do cárcere, remetendo aos tempos do Iluminismo, o ministro lembrou que já no século 18 havia aqueles, como o jurista italiano Cesare Beccaria, que criticavam as penas impostas aos condenados e procuravam estabelecer a diferença entre crime e pecado. Para ele, o que o XI de Agosto faz é retomar um debate que tem quase três séculos de idade, mas que foi “varrido para debaixo do tapete da História”.
Como representante daqueles que tentam defender, o XI de Agosto convidou para o evento Emerson Martins, egresso da Penitenciária Adriano Marrey e atual estudante de Psicologia. Em seu depoimento, ele citou como um problema o fato de os brasileiros, de modo geral, acreditarem que quem está encarcerado é “a escória da sociedade”, o que contribui para o preconceito. Quanto à maior necessidade de quem está dentro da prisão, Emerson não citou melhores condições de vida ou mais investimento do governo, mas simplesmente “uma atenção verdadeira da parte dos que estão fora das grades”.
O último palestrante foi o doutor Drauzio Varella. Conhecido por sua atuação em prol dos direitos humanos, o médico definiu o problema básico enfrentado pela sociedade hoje como “uma epidemia de violência urbana”, que seria uma doença contagiosa. Na contramão do que vinham dizendo os palestrantes, Drauzio Varella declarou que, do ponto de vista político, não vale a pena discutir a humanização do cárcere, uma vez que essa questão “não tem nenhum respaldo social”. Segundo ele, como já havia destacado Emerson Martins, o que os brasileiros pensam é que “lugar de bandido é na cadeia” e o desejo é que os prisioneiros sofram na prisão muito mais do que fizeram sofrer fora dela. Como exemplo, citou a aprovação dada por grande parcela dos paulistas ao massacre do Carandiru, tão expressiva que o coronel Ubiratan Guimarães, oficialmente o culpado pelo ocorrido, foi eleito duas vezes deputado estadual com um número que terminava com 111, em alusão à quantidade de mortos na penitenciária.
Sobre a insustentabilidade da situação carcerária no Brasil, o grande motivo da realização da campanha pela humanização do cárcere, Varella apresentou uma razão bem menos solidária para a mudança de que se precisa. Para ele, o cárcere precisa mudar porque “a conta não fecha”. Com o número de presos já bem maior do que o de vagas, o Estado não tem dinheiro suficiente para tanta gente nas celas superlotadas, muito menos para criar espaço para abrigar todos aqueles que a sociedade deseja prender.