Uma pesquisa do Instituto de Pesquisas Energéticas Nucleares da Universidade de São Paulo (Ipen) conseguiu explicar a natureza de uma falha presente no processo de produção de microesferas de vidro utilizadas em radioterapia interna seletiva. Feita a partir de medições de transferência de calor superficial, a análise permitiu atribuir possíveis imperfeições de formato a acúmulos de material resultantes do processo de sinterização.
A radioterapia interna seletiva é um dos principais tratamentos para o câncer no fígado, ou carcinoma hepatocelular. O procedimento, também conhecido por radioembolização, consiste na utilização de microesferas de vidro com radionuclídeos emissores de elétrons (ß-). Estas são introduzidas no fígado por meio de um catéter acoplado à artéria hepática e, ao atingirem o órgão, migram para áreas hipervascularizadas, locais onde normalmente há presença de tecido canceroso. Enquanto o bloqueio das vias que alimentam o tumor impede que ele aumente de tamanho, a radiação liberada combate as células cancerígenas.
Para que o método seja utilizado sem comprometer a saúde do paciente, é necessário que as microesferas passem por testes de toxicidade e resistência a corrosão e mantenham um nível de radiação adequado. Do mesmo modo, as estruturas não devem variar em sua composição, mantendo exatamente o mesmo tamanho e diâmetro - 93µm (micrômetros, ou a milhonésima parte do metro) em média. Seu formato deve ser perfeito, já que irregularidades na superfície das esferas, como o surgimento de pontas cristalinas, podem deixá-las suscetíveis a erosões por fluidos corpóreos e promover cortes nos vasos sanguíneos, permitindo o surgimento de hemorragias internas.
É possível que, no processo de produção, tais desconformidades superficiais surjam, resultantes do processo de cristalização do vidro. Na curva de aquecimento dos vidros aluminossilicatos, utilizados pelo Ipen na produção das esferas, observa-se um ponto chamado de “transição vítrea”, no qual o material que se encontra em estado vítreo passa a um estado “metaestável”. Entre os picos de cristalização, no entanto, havia uma mudança endotérmica inesperada: sem motivo aparente, as partículas do material absorviam calor.
Variação de volume específico em relação a temperatura de um vidro e de um cristal / Fonte: VIERA, H.; Avaliação da cristalização e durabilidade química de vidros niobofosfatos visando a imobilização de reijeitos radiotivos. 2008. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN-CNEN/SP, São Paulo. 68p.
Em seu trabalho de mestrado, Juliana Pereira de Souza, integrante do grupo que desenvolve as microesferas, conseguiu explicar por que esse fenômeno ocorre. Testes e análises do fluxo de calor feitas por calorimetria exploratória diferencial indicaram o processo de sinterização, nome dado ao deslocamento e aglutinação das partículas do material, como responsável pela alteração na linha base de aquecimento observada.
Uma vez que recebem maior quantidade de calor, “há a aproximação das partículas e se forma uma espécie de pescoço, que é quando elas se juntam. Com isso geralmente acontece o processo de densificação, ou seja, as partículas passam a ter mesma massa em um volume menor”, explica a pesquisadora. Essa retração explicaria as ondulações observadas na superfície das esferas imperfeitas. Quanto maior a distância entre o ponto de transição vítrea e os picos de cristalização, mais estável contra cristalização seria o vidro. Estudar maneiras de minimizar os efeitos desse processo promoveria a melhora no aproveitamento da produção.
Juliana ressalta as vantagens da utilização das microesferas, já permitidas em países como Austrália e Canadá. “Por se tratar de um câncer muito quieto, o paciente demora para ter sintomas. Quando se descobre, somente de 10% a 15% das pessoas são eletivas para cirurgia. No caso de tumores maiores, pode-se diminuí-los, contribuindo para o aumento do tempo de vida do paciente ou até mesmo possibilitando a realização de cirurgia”.
Estuda-se trazer a tecnologia a hospitais brasileiros. Testes de toxicidade em fluidos corpóreos foram realizados pelo Ipen e não indicaram problemas. São necessários agora testes in vivo, a serem realizados em animais no exterior, já que a legislação nacional ainda não autoriza o procedimento como tratamento para o carcinoma hepatocelular.