Este texto propõe que no coração da literatura brasileira encontra-se o pulsar de uma escrita auditiva, elaborada por autores que “escrevem de ouvido”. O objetivo é conceituar o termo “escrita de ouvido”, e descrever a forma que assume na prosa de ficção, em especial no romance. Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa são os escritores centrais dessa pesquisa, que também se aplica a outros escritores-chave como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Graciliano Ramos. Pensa-se pois o ouvido como um terceiro termo para além da dicotomia entre a fala e a escrita, o romance, como um espaço de escuta, e a autoria, como um lugar de recepção mais do que de producão. Busca-se assim contribuir para uma poética da ressonância e uma história aural da literatura escrita em português com acentos multilíngues.
The article proposes that at the core of Brazilian literature pulsates an aural writing elaborated by authors who “write by ear.” To prove this hypotheses, I relate “writing by ear” to two procedures found in Clarice Lispector, Machado de Assis, and Guimarães Rosa’s works: 1) a multiplicity of authorial voices—where the author is no longer the one who writes but the one who listens; and 2) a validation of improvisation (effective or pretended) as a method of literary composition. If the above description is valid, I propose that “writing by ear” is a concept potentially useful to understanding literature produced in a culture where orality and musicality predominate.
O presente estudo reelabora uma análise feita há alguns anos sobre o conto "Desenredo" de Guimarães Rosa (Tutaméia, 1967). Na ocasião, procedemos a uma leitura estritamente ligada ao campo da teoria literária, que agora desenvolvemos com o acréscimo de algumas reflexões provenientes da psicanálise e que se baseiam especifi camente em dois estudos de Freud: Os Chistes e sua relação com o Inconsciente (1905) e Escritores criativos e devaneio (1908).
Comentário sobre a obra crítica de João Adolfo Hansen, incluindo transcricão de entrevista integral realizada com o autor sobre o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
Este ensaio explora o princípio de aproximação entre literatura e culturas de tradição oral ao estabelecer uma analogia entre o ritual da Coroação de Reis Congo, em Minas Gerais, e a noção de "escrita de ouvido" na novela de João Guimarães Rosa "O recado do morro" (1956). A análise combina a experiência de seis anos de pesquisa de campo com os grupos de Congada nas localidades de Jequitibá, Cordisburgo, Calabouço, Lagoa Trindade, Perobas, Onça e Brejinho, com a teoria da escuta na escrita praticada pelo autor mineiro.
This study examines Grande sertão: veredas as a novel that thematizes its own fictionality and develops a self-reflexive narrative about the value of fiction for understanding life. I argue that the shorter narratives inserted in the larger narrative exemplify and engage in metafictional play while working both to reveal reality as a façade and the fictional as a revelation. In more specific terms, I analyze the episodes involving Fancho Bode and Fulorêncio, as well as those centered around Davidão and Faustino, as metafictional commentaries. In addition, I consider the case of Dr. Hilário as a meditation on the potential of fictionality. Riobaldo can therefore be read as the character who pursues a chivalric story with rewards and an “overall outcome,” but who finds instead a different situation, one of loss and disenchantment. These are characteristics of the modern novel in the Cervantine tradition, and thus Riobaldo could be seen as a kind of Quixote or Mephistopheles of the sertão, carrying out a search for the fictitious and entering into a pact with the demiurgic forces of creation. Flawed in life, he is nonetheless successful in the role of a great novel’s incessantly talkative narrator.
O objetivo desse artigo é estudar a expressão do desejo em Grande Sertão: Veredas, percebendo como o escritor nomeia o amor e o descreve em analogia com o espaço do sertão. Para isso, analisaremos dois episódios: o encontro com a "prostitutriz" Nhorinhá, em um lugarejo chamado Aroerinha, e a descoberta do desejo por Diadorim, na Guararavacã do Guaicuí. O texto encerra-se com uma análise da imagem-enigma: "O amor? Pássaro que põe ovos de ferro", com o intuito de compreender o processo de elaboração metafórica do tema amoroso.
Este artigo busca contribuir com um renovado vocabulário para a análise literária, em particular no que se refere aos estudos de tradução, multilingualismo, culturas orais e estudos sonoros na prosa de ficção. A partir de uma análise da novela "O recado do morro" (1956), de João Guimarães Rosa, esse estudo sugere a inclusão de dois termos intraduzíveis: recado e conconversa. O primeiro, um termo que em português significa “mensagem,” “rumor” e “aviso,” simultaneamente, remete a um tempo pré-babélico imaginário, quando a natureza “fala.” O segundo, remete a um tempo pós-babélico, quando a multiplicidade de linguagens converge através da tradução, em busca de um sentido partilhado apesar das diferenças linguísticas.
Este texto propõe os conceitos "latência" e "nuance" para descrever o efeito de suspensão criado pela ficção de João Guimarães Rosa. No primeiro momento, definem-se os termos "latência" e "nuance" em relação à imagem das nuvens. Como matéria em suspenso sempre mutável, é impossível inscrever o movimento das nuvens em uma forma fixa, a não ser que se crie uma escrita latente, apta a captar a nuance das formas em morfose. Em seguida, analisa-se o conto "Nenhum, Nenhuma", de Primeiras Estórias (1962), como uma pequena obra-prima da latência, mostrando que passado, presente e futuro se materializam simultaneamente na imagem enigmática que se busca entender: ?nuvens são para não serem vistas;? imagem que parece delinear o inconsciente de uma sensibilidade estética pós-1945.