Guimarães Rosa qualifie d’« autobiographie irrationnelle » son roman Grande Sertão : Veredas (1956) – le héros Riobaldo est un barde/poète qui se soumet à un pacte faustien pour prendre le dessus sur Hermogène (le signe arbitraire) et recevoir enfin Otacilia (le prix littéraire) ; toutefois, cela se conclut au prix de la perte de Diadorim (Deodoron, cadeau de Dieu : l’âme). Parallèlement, dans un registre poétique proche de l’oraliture holographique, Guimarães Rosa affirme avoir écrit son chef-d’oeuvre en état de possession. Et alors qu’il ajourne, par superstition avouée et revendiquée, son entrée à l’Académie brésilienne des lettres pendant quatre ans, il meurt mystérieusement trois jours après la cérémonie. Énigme ou mise en scène ? Par le biais d’indices factuels plantés avec soin sur les sentiers interprétatifs, et suivant à la ligne un scénario tout à fait inédit dans l’histoire universelle de la littérature, le romancier compose en menus détails une autobiographie irréductible à une version qui serait définitivement encadrée par l’impression graphique : cette autobiographie ne se conçoit que dans l’espace poétique de l’oraliture (dans ses manifestations sociales collectives et grégaires, au-delà de l’univers de la lettre imprimée). Dans le but de transformer en légende vivante sa propre existence et afin de se soustraire à l’incomplétude hasardeuse de la condition humaine (ainsi qu’aux limitations réductrices qui marquent l’avènement du texte écrit), Rosa raconte une vie (la sienne), sous prétexte d’une « mort annoncée », par l’intermédiaire d’une textualité qui s’accomplit exclusivement dans l’imaginaire de ses lecteurs.
Em março de 1956, João Guimarães Rosa, antes mesmo de lançar Grande sertão: veredas (sua “autobiografia irracional”), anuncia em jornal o projeto de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), apesar de sua condição de escritor praticamente inédito, por então. Foi a primeira entre três tentativas, todas marcadas por intenso desgaste emocional: somente sete anos mais tarde, em 1963, Rosa será finalmente eleito, quase à unanimidade. Paradoxalmente, passa a inexplicavelmente adiar a cerimônia de posse e vem a falecer exatamente três dias depois do evento postergado por quatro longos anos. Nos jornais do dia seguinte, chega-se até mesmo a anunciar que ele teria previsto a própria morte. Com base nesse enredo biopoético, buscamos “desentramar”, ao longo deste artigo, os indícios de uma narrativa metapoética em cujas linhas Rosa poderia ter eventualmente ficcionalizado sua relação com a poesia, com a planejada eleição, com a posse fatal e com a rivalidade própria aos membros da ABL, tal como se entrevê em “Desenredo”, de Tutameia – Terceiras estórias (1967). O presente ensaio percorre esse célebre prosoema em busca de elementos de reflexão sobre a seguinte questão genealógica: Quais são os limites entre ficção e biografia, entre narrativa poética e prosoema, entre estória e história, entre interpretação crítica e transcriação poética, entre imortalidade e pervivência, no caso de um autor que leva ao paroxismo derradeiro a noção de “autobiografia irracional”? Em outras palavras: Em sua genealogia, caberia ler “Desenredo” como um irreverente texto metapoético?
Tal como na epopeia de Rama (herói de Ramayana), Augusto Matraga cumpre um período de banimento na mata, conduzido por um casal de “sadhus” (ascetas que se dedicam à vida espiritual) e um sacerdote. Em seu “ashram” (local ermo e selvático, destinado a práticas espirituais), Augusto aproxima-se dos desmunidos e dedica-se a meditação e preces, precisamente como Rama. Ao termo de sua ascese, Augusto confronta-se voluntariamente com seu duplo, Joãozinho Bem-Bem; ao final de uma coreografia marcial dedicada a Shiva, entrega-se à Bela Morte e alcança redenção e renome. O episódio espelha a missão para a qual Rama é predestinado pelos deuses: liquidar definitivamente Ravana, o demônio de dez cabeças. Em leitura contrastiva com textos de diversas origens, o conto “A hora e vez de Augusto Matraga” será percorrido em busca de eventuais pistas que permitam também perscrutar o sentido da morte de Guimarães Rosa, anunciada previamente em sua “autobiografia irracional” e amplamente inspirada no topos homérico da Bela Morte (καλòς θάνατος).
Grande Sertão: Veredas apresenta-se como um "almanaque grosso, de logogrifos e
charadas", ou uma "autobiografia irracional", conforme orientação de Rosa. No texto e sobre o
paratexto, espalham-se enigmáticos signos especulares que remetem a uma poesia
profundamente autorreferenciada. Por meio da decodificação de tais signos, busca-se lançar
alguma luz sobre a enigmática e prematura morte do romancista, previamente anunciada em
sua “autobiografia irracional” e ocorrida apenas três dias após a posse na Academia Brasileira
de Letras, um evento estranhamente adiado durante quatro longos anos.