“Clássico” de nascimento, Guimarães Rosa irrompe em nossas letras recolocando a matéria regionalis-ta num novo modo de conformação. Modo de compor que promove um espantoso amálgama de formas narrativas numa tessitura lingüística peculiar. Estilo in opere, “incoagulável, reinventando-se em incessan-te dinâmica” (Oliveira, 1991, p. 179); opera a linguagem em todos os seus planos: sonoro, lexical, sintático, semântico. A “revolução da linguagem”, que valeu a Rosa os epítetos de “bruxo da linguagem”, “demiurgo da linguagem”, repousa numa aguda consciência estética sobre a problemática da representação. Além de toda essa orquestração na conformação lingüística, que já implica e denuncia o posicionamento estético assumido pelo autor, o poético também entrará em cena no jogo narrativo.
Constatamos (1): uma primeira assimetria entre as idéias tradicionais e bastante difundidas de que, enquanto a filosofia, uma espécie de super-ciência das essências universais, segundo uma lógica-da-razão, visa “o Real” em seu sentido mais profundo e verdadeiro, a literatura se ocupa antes de certas fantasias regionais, segundo uma lógica-da-imaginação (para a qual não há, enfim, regras sistemáticas), satisfazendo-se com um mundo ficcional e apenas suficientemente verossímil. Bem: quem melhor espelha o real? Quero tentar inverter essa primeira assimetria apontando outra, que a relativiza. Pois constatamos também (2): um lugar onde podemos procurar algo parecido com um “pensamento brasileiro” ou com “o pensamento do Brasil sobre si mesmo” não pode ser de modo algum a filosofia, pois nesse campo, simplesmente, o objeto não existe (isto é, não existe nenhuma “filosofia do Brasil”, mas apenas alguma filosofia “no Brasil”, como todos sabemos muito bem). Enquanto nossa filosofia (sic) parece ser machadiana por excelência – pois ela, cética quanto a si mesma, não parece acreditar possuir uma “alma interior” autêntica: somos, ironicamente, “tropicalistas” e “antropofágicos” por convicção e/ou adesão (ou oportunismo), e nos satisfazemos com as roupagens conceituais que conseguimos imitar das línguas francesa, alemã ou inglesa (em suma), com as quais podemos apenas compor o quadro conveniente de nossa alma exterior, para as oportunidades de consumo local –, enquanto isso é a literatura que tem se empenhado em refletir nossa própria realidade, com maior ou menor competência, com maior ou menor fidelidade ou honestidade.
Oitenta anos separam “O espelho”, de Guimarães Rosa, do conto homônimo de Machado de Assis. Se Rosa escreveu o seu para responder ao de Machado, é coisa que a crítica se compraz em discutir. Algo, no entanto, é indiscutível: o retorno de Rosa ao dileto assunto de Machado o converte em tema clássico da história do conto brasileiro. Mas se considerarmos que, em ambos os autores, narradores-protagonistas contam experiências com espelhos e que tais experiências envolvem o autoconhecimento enquanto co-nhecimento da alma, podemos ir mais longe e afirmar que, do escrito do carioca ao do mineiro, é possível ver constituir-se uma poética do espelho. A fim de que se possa contribuir para descrevê-la, que o nosso olhar se dirija agora para o espelho de Rosa.