Neste artigo a autora mostra o diálogo de Guimarães Rosa com a pintura da Antigüidade, da
Idade Média e Renascimento, colocando-o ao lado de outros autores, o que permite situá-lo numa longa
duração da criação poética ao mesmo tempo que o individual.
"Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos", diz Rosa em entrevista a Günter Lorenz (1983:67). A afirmação se aplicaria facilmente a toda a obra roseana, onde o gado, além de evocar sua longa existência simbólica, mitológica e literária, se oferece à contemplação em toda a exuberância de sua materialidade ? som, cor, textura, volume, movimento, cheiro... Em O burro e o boi no presépio, a própria estrutura da obra exige essa contemplação. Nos vinte e seis poemas, os humildes coadjuvantes das Natividades de Botticelli, Schongauer, Dürer e outros, parecem aspirar a protagonistas, revestem-se do que Carlo Ginzburg chama ?dimensão ostensiva? (GINZBURG 2001:119): ao ?Ecce puer?, Rosa parece juntar ?Ecce bos!, Ecce asinus!?. Verbo e pintura continuamente reenviam-se, ostentam-se um ao outro e, junto com a ênfase insistente nos bichos, o leitor entreouve ?Ecce opera?! É nessa ekphrasis generosa, sem agon nem paragone, que cirandam os quadros, os bichos e a palavra de Rosa.
Guimarães Rosa que estão entre os 26 poemas intitulados O burro e o boi no presépio, publicados inicialmente na Revista Senhor e, depois, no livro póstumo Ave, palavra. É um conjunto de poemas inspirado em quadros medievais e renascentistas que tem como tema principal as figuras do boi e do burro na cena do nascimento de Jesus. Os poemas são analisados em seus aspectos métricos, rítmicos, sonoros e suas unidades semânticas e expressivas com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre a produção poética do escritor, tanto na sua criação formalmente considerada como poesia quanto em sua prosa, impregnada de poesia.
Quase um ponto cego na fortuna crítica rosiana, “O burro e o boi no presépio” ressente-se também de uma evidente negligência editorial – das 26 imagens referidas pelos poemas, duas reclamam revisão e cinco não constam na única edição ilustrada, esgotada há anos. Tendo reconstituído e sanado as correspondências imagem-poema, nosso trabalho analisa, num primeiro momento, “O burro e o boi no presépio” enquanto ponto de interseção das veredas-mestras da poética de Rosa – a espacialidade, a performatividade, a autoinclusão e a preocupação metafísica. Considerada nessas quatro dimensões fundamentais, cada obra e a obra inteira de Rosa emergem como um poema, uma configuração de nexos não-lineares que um autor implícito conspícua e deliberadamente atuante faz por apontar. Em Corpo de Baile o nexo fundamental é justamente o presépio. Mistério fundador no cristianismo, a Natividade associa-se à devoção festiva e risonha que encontramos no ciclo das sete novelas, onde o presépio é, mais do que leitmotif, uma celebração da poesia como lugar do sagrado. Sempre lado a lado com
os poemas do presépio, a segunda parte do trabalho percorre Corpo de Baile como essa celebração performada na coenunciação literária, profissão de fé a um tempo estética e religiosa, de um escritor para quem “credo e poética são a mesma coisa” (ROSA In COUTINHO, 1983, p.74).
Nos vinte e seis poemas de O BURRO E O BOI NO PRESÉPIO (Catálogo esparso), publicados
postumamente em Ave palavra, o olhar do poeta João GUIMARÃES ROSA percorreu formas, volumes,
cores, linhas, perspectivas, luzes e contrastes de quadros medievais e renascentistas e fixouse
nas imagens do burro e do boi, redimensionando-as poeticamente. Nessa re-dimensão dada aos
quadros pelo poeta, perpassam relações entre a literatura e as artes plásticas, entre a poesia – e a
poesia de João Guimarães Rosa – e a pintura, aspectos estes entranhados nas formas de realização
artística do Modernismo brasileiro que representam um modo de construção poética singular na literatura brasileira do século XX. Poeticamente, o autor/poeta, numa perspectiva intertextual, fundiu estilos literários e pictóricos e recriou, por meio de sua particularíssima linguagem, aspectos da região do interior de Minas Gerais, estabelecendo ligações de espaço e de tempo diversos, traduzindo a pintura para a poesia, por meio
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