O conto "Sarapalha" chamava-se Sezão e dava nome também ao livro que viria a se chamar Sagarana. Desse proto-Sagarana, o título alusivo à doença foi abortado, assim como o conto "Bicho mau", publicado depois numa versão expurgada de várias páginas que apontavam muito indiscretamente para o diploma de médico do autor. O borrar dessas evidências demasiadamente "documentais" por Rosa parece confirmar uma instrução de leitura recorrente na obra rosiana: a metafísica e a poesia -- e não a contingência -- devem ressoar soberanas em sua escrita. É o que tentamos mostrar numa breve análise do médico e da doença em "Sarapalha", "Campo geral" e "Buriti".
Em Meu tio o Iauaretê, technê, poiesis e mimesis simetrizam o agon-luta da narrativa em agon-jogo da narração. A technê de Tonho Tigreiro, narrador que enleia, intriga, ludibria e embosca narratário e leitor, reencena a technê caçadora, predadora, do onceiro tornado onça. Na obra acabada, seus feitos como personagem transmutam-se em poiesis – suas proezas de bravo caçador têm ares de boasting poems, seus massacres de predador operam a damnatio ad bestias dos vícios humanos estetizados em tableaux vivants. A onça que ele mimetiza se faz ver e ouvir no tecido mesmo da palavra - nas armadilhas da narração, no cratilismo da linguagem - operando uma mimesis em mise en abyme que, denunciando as astúcias da feitura, exime-se da aspiração a cópia da realidade.
"Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos", diz Rosa em entrevista a Günter Lorenz (1983:67). A afirmação se aplicaria facilmente a toda a obra roseana, onde o gado, além de evocar sua longa existência simbólica, mitológica e literária, se oferece à contemplação em toda a exuberância de sua materialidade ? som, cor, textura, volume, movimento, cheiro... Em O burro e o boi no presépio, a própria estrutura da obra exige essa contemplação. Nos vinte e seis poemas, os humildes coadjuvantes das Natividades de Botticelli, Schongauer, Dürer e outros, parecem aspirar a protagonistas, revestem-se do que Carlo Ginzburg chama ?dimensão ostensiva? (GINZBURG 2001:119): ao ?Ecce puer?, Rosa parece juntar ?Ecce bos!, Ecce asinus!?. Verbo e pintura continuamente reenviam-se, ostentam-se um ao outro e, junto com a ênfase insistente nos bichos, o leitor entreouve ?Ecce opera?! É nessa ekphrasis generosa, sem agon nem paragone, que cirandam os quadros, os bichos e a palavra de Rosa.
Os animais se acompanham, através de eras e culturas, dum misto de fascínio reverente e desdém
superior, mas qualquer que seja a tendência que predomine, a alteridade radical dos bichos convida
sempre à estetização. É o que tem mostrado a recente vaga de atenção ao mundo não-humano em
literatura, revelando, em nomes conhecidos, nítidos pendores zoopoéticos. Ensaiamos aqui um
breve sobrevoo das obras de três zoopoetas brasileiros incontornáveis.
Quase um ponto cego na fortuna crítica rosiana, “O burro e o boi no presépio” ressente-se também de uma evidente negligência editorial – das 26 imagens referidas pelos poemas, duas reclamam revisão e cinco não constam na única edição ilustrada, esgotada há anos. Tendo reconstituído e sanado as correspondências imagem-poema, nosso trabalho analisa, num primeiro momento, “O burro e o boi no presépio” enquanto ponto de interseção das veredas-mestras da poética de Rosa – a espacialidade, a performatividade, a autoinclusão e a preocupação metafísica. Considerada nessas quatro dimensões fundamentais, cada obra e a obra inteira de Rosa emergem como um poema, uma configuração de nexos não-lineares que um autor implícito conspícua e deliberadamente atuante faz por apontar. Em Corpo de Baile o nexo fundamental é justamente o presépio. Mistério fundador no cristianismo, a Natividade associa-se à devoção festiva e risonha que encontramos no ciclo das sete novelas, onde o presépio é, mais do que leitmotif, uma celebração da poesia como lugar do sagrado. Sempre lado a lado com
os poemas do presépio, a segunda parte do trabalho percorre Corpo de Baile como essa celebração performada na coenunciação literária, profissão de fé a um tempo estética e religiosa, de um escritor para quem “credo e poética são a mesma coisa” (ROSA In COUTINHO, 1983, p.74).
Em Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, o animal e a morte recorrem e se entrelaçam. Percebemos nessa recorrência uma enorme força estetizante, capaz de coagular os temas, motivos, ideias, afetos e nexos intertextuais que constituem o que é singular a Graciliano e Rosa. Chamamos zoomemento da morte à presentificação conjunta da morte e do animal tanto no universo interno à narrativa (portanto de modo discernível e relevante para os personagens) como ao nível das instâncias implicadas na co-enunciação da obra (autor e leitor implícitos, autor e leitor empíricos, narrador e narratário etc). Segundo invoquem a morte enquanto evento natural ou enquanto ato violento, os zoomementos serão, respectivamente, zoomemento mori e zoomemento occidere. Onde se encontrem enquanto signo da morte em seu anverso, a sede e o gozo de viver, teremos zoomemento vivere. Mori, occidere e vivere, enquanto zoomementos, serão as categorias críticas que nos guiarão na leitura do Vidas secas de Graciliano Ramos e de três estórias do Estas estórias de Guimarães Rosa Bicho mau , Meu tio o Iauaretê e Entremeio Com o vaqueiro Mariano