ISSN 2359-5191

01/12/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 120 - Saúde - Instituto de Ciências Biomédicas
Tratamento por genes ainda é distante no Brasil
Terapia gênica é esperança para doenças como câncer, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido
Terapia gênica é esperança para doenças de difícil tratamento (Foto: reprodução)

O uso terapêutico de genes tem um conceito bastante simples: transferir material genético para uma célula com o objetivo de retardar ou até mesmo de curar uma doença. É como se esses genes fossem utilizados como drogas e uma sequência de DNA fosse o princípio ativo do medicamento. A ideia, que surgiu simultaneamente às técnicas de DNA recombinante, quando se começou a isolar as partes do DNA responsáveis por patologias humanas, na década de 70, é bem lógica: existe um gene defeituoso na célula; se for possível repará-lo, o quadro da doença é revertido. Na prática, contudo, a técnica é muito mais complicada e encontra dificuldades comuns a quaisquer tratamentos em fase experimental, mas também enfrenta desafios próprios devido ao uso de material biológico como agente farmacológico. Além dos dilemas éticos, a escolha do gene terapêutico, do veículo de transferência gênica e o desafio de tratar uma doença multigênica e complexa como o câncer são alguns deles. O Brasil encontra-se, hoje, em fases precoces de desenvolvimento da técnica da terapia gênica, mas avanços no sentido de construir esses medicamentos de alta qualidade têm sido feitos para nos colocar mais perto de tratar patologias ainda sem cura, é o que aponta a professora Eugênia Costanzi-Strauss, do Laboratório de Terapia Gênica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

As escolhas no processo

A terapia gênica só pode ser realizada a nível somático; não é permitido que se altere células germinativas. "Não se pode repor o gene defeituoso em todas as células do corpo. Por isso a escolha do gene é muito importante", explica a professora. Quando se trata de uma doença hereditária, como a fibrose cística, em que só um gene é defeituoso, é necessário repor essa unidade. Mas como não se pode substituí-lo em todas as células, o que se faz é tentar corrigir os defeitos nos órgãos de choque como o pulmão e as vias respiratórias.

Mas em doenças multigênicas, causadas por defeitos em mais de um gene, esse desafio é ainda mais complicado. Às vezes, repor o gene defeituoso não é a solução, porque podem existir outros passos que estão com problema. "É preciso, por isso, conhecer os mecanismos moleculares para a seleção do gene terapêutico", conta.

Uma outra escolha importante a ser feita é o veículo de transferência gênica. A melhor opção, segundo Eugênia, são os vetores virais. "Os vírus foram feitos para infectar uma célula, transferir os genes virais e fazer com que ela passe a produzi-los até a sua liberação para infectar mais células", explica. Os vetores virais mais utilizados são os retrovírus que têm como material genético o RNA , os adenovírus vetores de DNA –, os adenovírus associados e os lentivírus, um tipo de retrovírus que descende do HIV. No laboratório, todos esses vetores são manipulados e as sequências virais associadas a uma patologia causada pelo vírus são removidas para que sejam incapazes de reproduzir na célula alvo. Ele vai transduzir, não infectar.

Principais vírus que servem de vetores para a terapia gênica (Foto: Carlos Menck e Armando Ventura para Revista USP, n.75, p. 50-61) 

O primeiro protocolo clínico licenciado tem origem nos Estados Unidos, na década de 90, para uma doença rara, conhecida como a do "menino da bolha de plástico", em que a pessoa, já ao nascer, tem pouco ou nenhum sistema imunológico. Hoje, há estudos que sugerem que a terapia gênica cura oito de dez crianças com a patologia. Apesar do sucesso no tratamento de doenças genéticas como a do menino da bolha, esses problemas são raros e, na prática, o custo para o desenvolvimento de medicamentos a partir da transferência de genes é muito alto. O retorno para a indústria farmacêutica, que arca com o processo de licenciamento depois de os protocolos terem saído da academia, é baixo porque o volume de pacientes é pequeno.

Etapas envolvidas em um experimento de terapia gênica, exemplificado com um vetor viral (Foto: Carlos Menck e Armando Ventura para Revista USP, n.75, p. 50-61)

Terapia gênica no câncer

Mas, no mundo do câncer, o cenário é diferente. "Câncer é uma doença com uma frequência enorme. Se for possível desenvolver uma estratégia para curá-lo, um grande número de pessoas vai ser atingido", afirma a professora. A medida que a população vai envelhecendo, aumenta-se o risco de desenvolver a doença. É um problema de saúde pública. As técnicas de tratamento são cada vez mais caras e individuais. A terapia gênica atrai por causa do grande volume de pacientes e do desafio que é tratar essa patologia. De todos os protocolos clínicos experimentais cadastrados de terapia gênica, cerca de 70% são para o tratamento do câncer.

Todos os tumores têm em comum células que perderam o controle do ciclo celular, isto é, que se dividem muito e se recusam a envelhecer. O alvo principal dos quimioterápicos é o sistema de controle da proliferação celular, por meio de marcadores como os oncogenes que são superexpressos e dão independência para a célula crescer e os genes supressores de tumor que temos em nosso genoma. Esses supressores são moléculas bloqueadoras, capazes de interferir no ciclo celular quando a célula sofre um estresse como uma quebra de DNA por radiação ultravioleta até que o genoma seja reparado. Se não puderem fazer esse conserto, eles induzem um programa de morte celular programada, conhecido como apoptose.

Os genes supressores são aqueles que são perdidos na célula tumoral, por isso são os principais candidatos para a terapia gênica do câncer. "Sendo possível recolocar esse gene, a célula tem a chance de voltar a responder com morte ou envelhecimento", destaca Eugênia. Agindo nessa maquinaria, qualquer tipo de tumor, independentemente da origem, é passível de ser tratado pela técnica. E esse é o sonho: a criação de um medicamento universal.

Mas o Brasil, alega a professora, que não tem tradição de desenvolver medicamentos, carece de uma ciência de construção aquela que adiciona e não apenas repete. "Falta o desenvolvimento de uma medicina translacional, que vai da bancada do laboratório, na universidade, até o leito do paciente", complementa. Para fazer um medicamento chegar até o paciente, existe uma grande rota, um caminho longo que o nosso país raramente percorreu. E, na terapia gênica, em que há o desafio de utilizar uma droga biológica, isso se torna um degrau ainda mais difícil de ultrapassar. Mas esforços estão sendo feitos nesse sentido, ressalta Eugênia, para que esse caminho, no Brasil, se torne cada vez mais curto.

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