ISSN 2359-5191

25/08/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 109 - Sociedade - Hospital das Clínicas
Em luta: as mazelas da população trans
Além da transfobia diária, a comunidade tem que lidar com precariedade do sistema no que se refere a direitos e saúde

Em um mundo que caminha gradativa e lentamente no que se refere aos direitos das minorias, sejam elas a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) ou negra, o Brasil ainda é considerado o país mais transfóbico. De acordo com uma pesquisa realizada pela organização não governamental Transgender Europe, entre os anos de 2008 e 2014, 604 transexuais e travestis foram assassinadas em território brasileiro. Paralelamente à luta diária contra a transfobia, a comunidade ainda precisa lutar pela garantia de direitos civis relativos a saúde, tratamentos e reconhecimento jurídico.

Breve histórico

As primeiras cirurgias de redesignação sexual foram realizadas por volta das décadas de 1920 e 1930. A famosa artista Lili Elbe, uma das primeiras mulheres transexuais a realizarem esses procedimentos, morreu logo depois de uma de suas cirurgias (vaginoplastia) em 1931, mas representou um importante marco na história do movimento trans. Suas operações permitiram que, em 1930, ela mudasse legalmente seu nome de Elinar Wegener (masculino) para Lili Elbe.

Responsável pela primeira cirurgia de Lili (remoção dos testículos), o médico e sexólogo Magnus Hirschfeld fundou, em Berlim, o pioneiro Instituto para o Estudo da Sexualidade, responsável por gerar pesquisas que, juntamente com o trabalho de outros médicos da época, abriram caminho para o estudo e o debate da transexualidade. Sua vida inspirou um livro e, em 2015, o filme A Garota Dinamarquesa (The Danish  Girl).

Influenciado por Hirschfeld, Harry Benjamin foi um importante endocrinologista que introduziu hormônios nos tratamentos para pessoas transexuais. Em 1952, uma das primeiras operações de redesignação sexual a envolverem tanto a cirurgia quanto os tratamentos hormonais foi anunciada pela americana Christine Jorgensen.

Registrada ao nascer como George Jorgensen, a artista americana decidiu iniciar sua transformação logo depois de voltar da Segunda Guerra Mundial na qual serviu pelo seu país. Na Dinamarca, se encontrou com o médico Christian Hamburger, que à época testava tratamentos hormonais, e o psicólogo Georg Sturup, que a acompanhou ao longo do processo. Antes de retornar para os Estados Unidos, Christine já era manchete em diversos periódicos do país, e, ainda viva, fortaleceu o debate sobre identidade de gênero no mundo.

No Brasil, as cirurgias de redesignação de sexo são permitidas desde 1997. Antes disso, as pessoas transexuais que desejassem passar pelo processo tinham que fazê-lo de forma ilegal ou viajar para fora do país, muitas vezes sem todo o acompanhamento necessário. A partir de 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) realiza essas operações desde que atendidos os requisitos: maioridade, acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois anos, laudo psicológico ou psiquiátrico favorável e diagnóstico de transexualidade. O portal oficial do governo afirma que até 2014 haviam sido realizados 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos através do SUS.

O processo

A população trans é extremamente diversa e compreende grupos distintos de pessoas. Nestes grupos existem pessoas que não se identificam com nenhum gênero, pessoas que se identificam com dois gêneros, pessoas que se identificam com o gênero oposto e passam por cirurgias com tratamento hormonal para que se assemelhem fisicamente ao outro sexo ou fazem apenas tratamento hormonal. As formas que os transgêneros podem encontrar para se sentirem bem consigo mesmos são inúmeras e cabe a eles escolher qual.

Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, explica que nem todos os transgêneros procuram por intervenções médicas. “Transgênero é uma grande nomenclatura que engloba várias possibilidades. Mas a pessoa não vai precisar da avaliação médica, não vai querer tomar hormônio, nada disso. Aí não é uma questão médica.”

Quando a pessoa procura por alterações no corpo é necessário um médico. “Por exemplo, se é um homem transexual, a retirada das mamas é fundamental. A genitoplastia, não. Se é uma mulher transexual, a cirurgia genital é fundamental. Você tem que ver esses pacientes e entender o que eles estão buscando”, ele explica. As combinações de possibilidades cirúrgicas com as terapias hormonais são muitas, e a pessoa vai escolher, junto ao médico, como ela prefere.

 

Imagem: Ethel Rudnitzki

Saadeh afirma que o SUS cobre essas cirurgias, os tratamentos hormonais e o acompanhamento psicológico desde que seja com pessoas acima de 18 anos. As cirurgias são autorizadas somente depois dos 21. Mas o ambulatório que coordena só recebe crianças e adolescentes para acompanhamento. “Com as crianças é muito mais um trabalho de observação até a puberdade, onde aí já é possível ter um diagnóstico fechado. Pode-se começar a hormonoterapia cruzada, definitiva.”

O acompanhamento psiquiátrico é extremamente importante, segundo Sadeeh, para que se tenha certeza de que a pessoal é transexual e está preparada para as mudanças corporais. “O trabalho de diagnóstico, de afastar qualquer transtorno psiquiátrico, é muito importante e é muito cuidadoso”, afirma. “Você não pode, por si só, indicar a cirurgia para alguém que tem um quadro psiquiátrico grave, porque você não sabe o resultado final disso”. Posteriormente, o acompanhamento continua importante, pois a pessoa transexual vai ter que lidar com questões do dia a dia que antes talvez não precisasse.

Morgana Pereira, mulher transexual, conta que fez grande parte de seu tratamento hormonal sozinha, e, apesar de conseguir acompanhamento endocrinológico em Unidades Básicas de Saúde (UBSs), ela conta que não era bom. “Quanto aos remédios em si (hormônios e antiandrogênicos), o acompanhamento é muito falho. Tive que desembolsar do meu dinheiro enquanto deu, mas não pude fazer completo por conta disso. Tive muitos avanços (seios cresceram em dois meses), mas com o tempo ficou muito prejudicado.”

Quanto ao acompanhamento psicológico, Morgana conta que fez, em grande parte, com uma psicóloga do Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CR LGBT) em Campinas. “Durou três anos oficialmente, mas sempre que tinha necessidade podia consultá-la. As piores partes foram para lidar com coisas do cotidiano, pois para uma pessoa trans, o simples uso de um banheiro gera uma crise dos diabos.”

Direitos

Apesar das conquistas relacionadas ao direito à saúde estarem aumentando, as vitórias relacionadas a buscas por direitos justos ainda estão atrasadas. Na contramão de países como o Canadá, que no Dia Internacional de Combate à Homofobia e Transfobia, 17 de maio de 2016, apresentou um projeto de lei que pretende defender os direitos humanos da população trans naquele país, está o Brasil. A esfera federal do país é a que mais apresenta entraves para garantir direitos à essa minoria, como o de permitir que transexuais e travestis usam seu nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais.

Houve um decreto feito pelo governo Dilma no dia 28 de abril de 2016 que garantia esse direito. Porém, assim que o presidente interino Michel Temer assumiu o cargo da ex-presidenta, ele foi ameaçado. As barreiras incluem posturas reversas à igualdade de direitos, como a de deputados da bancada evangélica. Os pastores Ronaldo Nogueira (PTB-RS) e Ezequiel Teixeira, ex-secretário de Direitos Humanos e Assistência Social do Estado do Rio de Janeiro e exonerado de seu cargo depois de defender publicamente a ‘cura gay’, são alguns dos autores do projeto de lei apresentado em 18 de  maio de 2016, que pretende retroceder na medida.

Em âmbitos municipais, algumas conquistas estão mais evidentes, não excluindo o fato de serem tardias. A prefeitura da cidade de São Paulo já colocou em prática o projeto Transcidadania, que tem como proposta disponibilizar auxílio para a população LGBTT em situação de vulnerabilidade, atendidas pela Cads (Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual), viabilizando atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania.

Outra medida positiva para a comunidade trans foi a aprovação do uso do nome social na carteira da Ordem por advogados e advogadas travestis e transexuais pelo Conselho Federal da OAB, em sessão no dia 17 de junho de 2016.

Sobre as leis e direitos da comunidade trans no Brasil, Morgana Pereira se sente pouco representada e diz que é comum que ocorra a busca por medidas paliativas que não beneficiam ou suprem as necessidades dos LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Ela aponta que os maiores impasses para que haja novas conquistas estão nas mãos da bancada evangélica conservadora na política brasileira. “A representatividade é pífia. A lei brasileira não me representa.”

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