São Paulo (AUN - USP) - Entitulado por Cannabis: uma questão de saúde pública, socioeconômica ou ambas?, o recente debate que aconteceu no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) trouxe médicos psiquiatras e historiadores para discutir o consumo da maconha e por que fala-se tanto em legalizá-la. O debate fez parte do encerramento da disciplina “Debates atuais das ciências biomédicas”.
Segundo Carlos Aberto Guilherme Salgado, psiquiatra especialista em dependência química, a principal diferença entre proibir, legalizar e descriminalizar é que o cidadão recua diante de uma proibição, enquanto diante de uma descriminalização ou legalização a sua percepção de risco tende a diminuir, e isso é perigoso. “O consumo de uma substância como a maconha sempre terá impacto na vida do indivíduo e da sociedade, não se pode perder a noção desse risco”, diz o médico.
“A legalização levaria sim ao aumento do consumo de maconha, pois a percepção de risco do usuário fica menor. Portugal é um grande exemplo disso, visto que o número de usuários entre os jovens aumentou consideravelmente após a legalização”, argumenta Salgado. Segundo o médico, caso o uso da maconha seja legalizado, a sociedade terá que fazer um esforço brutal para conter o consumo, assim como faz com o tabaco.
Ratificando o exposto por Salgado, o médico psiquiatra Arthur Guerra de Andrade afirma que o consumo da maconha pode levar ao consumo de outras drogas sim. “Trata-se de um ritual de 'batismo' do usuário. Ele sempre vai experimentar com uns amigos e achar que está tudo certo e que ele tem o controle da situação”, argumenta.
O médico lembra do impacto do uso da maconha na saúde pública, por ser uma droga cujo uso acontece em diferentes segmentos populacionais. Na sociedade brasileira, em geral, o número de dependentes da maconha aproxima-se a 10%. Isso significa que em cada dez pessoas que a usam, uma desenvolve dependência. Entre os jovens, esse número aumenta para 26% dos usuários.
Arthur Guerra chama atenção ainda para a forma assombrosa com a qual o consumo de maconha aumentou na América do Sul. Segundo o médico, a maconha começou a vir mais forte e de várias outras formas (como o skank e o haxixe) e passou a ser consumida por idades mais precoces. Além disso, aumentou-se o número de pessoas com dificuldades ou problemas que passaram a usar a droga como uma forma de escape da sua realidade.
Em contraposição aos pontos de vista apresentados pelos colegas da área de saúde, o professor Henrique Soares Carneiro, pesquisador na área da história da alimentação, das bebidas e das drogas, lembra que o modelo proibicionista de certas drogas é baseado em um ideal inviável, que é o de erradicação de certas plantas usadas milenarmente na sociedade. “Querer proibir o uso da maconha é querer destruir a existência da droga. Quanto a isso, eu gostaria de citar Voltaire, que dizia que todos os excessos são condenáveis, inclusive os da abstinência”, argumenta Carneiro.
O professor lembra ainda que as pessoas que usam álcool e maconha são pessoas completamente integradas à sociedade, e que vêem o consumo como um estilo de vida e, mais que isso, como um direito da liberdade individual baseado no ideal moderno de autonomia. “O consumo de alimentos é uma prática de riscos tal qual o consumo de maconha. Mas ninguém vê o obeso como criminoso. Ninguém vê uma pessoa que vende açúcar ou derivado de açúcar como traficante”, afirma o professor.
Carneiro explica que a proibição das drogas é um mecanismo especulativo, pois há a hipertrofia do lucro. O preço estabelecido é vinculado à proibição e não a produção. E essa proibição traz resultados danosos à sociedade, pois impede que haja a dosificação e o controle de qualidade da maconha. “A venda da droga não pode mais permanecer como uma economia paralela. Nós precisamos acabar com o risco da violência intrínseca à venda e consumo da maconha”.
Marcelo Firmino de Oliveira, cientista com experiência na área de química forense, apoia a opinião de Carneiro e afirma que, se houvesse a legalização da maconha, não haveria a erradicação do tráfico, mas seria um duro golpe aplicado, pois a droga representa hoje mais de 50% do poderio dos traficantes. “Se um consumidor pode comprar em uma farmácia, ele não irá comprar em uma favela. O governo poderia oferecer um controle de qualidade e o consumidor estaria protegido da violência que existe hoje ao redor do comércio da droga”.
O cientista também se coloca como defensor do direito de consumir a maconha. “Como cientista, eu não recomendo fumar, pelos problemas intrínsecos a este ato, como a causa do câncer, entre outras consequências. Mas eu sou a favor de algo que importa mais do que o ato de fumar que é o direito de fumar. Isso está acima dos benefícios ou malefícios da droga”.
Após um longo debate, os convidados concordaram que legalização da maconha ainda é um assunto muito polêmico e é preciso que aconteça cada vez mais debates para efervescer na sociedade essa discussão. Apoiar a legalização da cannabis é diferente de apoiar o uso da droga. Por esse motivo, a legalização precisa ser vista não só como uma questão de saúde pública brasileira, mas como uma questão socioeconômica e, principalmente, democrática deste país.