Em Cidade Tiradentes, distrito localizado no extremo Leste da cidade de São Paulo, vivem cerca de 220 mil pessoas. Criado pelo poder público, nos anos 1980, como “cidade-dormitório” para famílias de baixa renda, o distrito abriga hoje o maior conjunto habitacional popular da América Latina.
Em 2009, começamos uma pesquisa sobre práticas artísticas em Cidade Tiradentes. Convidamos alguns artistas-moradores para compor a equipe deste mapeamento. Foi nosso primeiro contato com alguns dos protagonistas das histórias que contamos nos materiais deste livro multimídia.
De lá para cá, fizemos um site interativo a partir de uma pesquisa participativa com intervenções no território – o Mapa das Artes da Cidade Tiradentes (www.cidadetiradentes.org.br) – dois documentários – Lá do Leste e A Arte e a Rua – e escrevemos artigos que estão publicados em revistas e livros. No DVD que acompanha este livro, é possível assistir aos filmes e aos debates que sucederam seus lançamentos.
Em quatro anos conhecendo Cidade Tiradentes a partir de seus artistas – de suas obras, suas inquietações, de nossas conversas, da produção conjunta de pesquisas e filmes – fomos construindo um mosaico de imagens, sons, cores, formas, ideias, frases, sonhos, dúvidas e conflitos. As peças desse mosaico não são fixas. Nem finitas. Mudam de lugar conforme o ponto a partir do qual olhamos Cidade Tiradentes.
Para o texto deste livro, recolhemos algumas dessas peças e as dispusemos em forma de cenas e bastidores. Nesse roteiro “às avessas”, escrito quando o filme já está no mundo, estão em cenas os protagonistas da arte de rua em Cidade Tiradentes, personagens nada fictícios que experimentam as transformações dessa arte e do próprio território.
Conversas e discussões que tiveram lugar em todo o processo de nossa experiência em Cidade Tiradentes, desde 2009 até as sessões de lançamento dos filmes, constituem a matéria-prima dos bastidores. Aqui, a escrita toma emprestado do cinema o método da montagem, aproximando enunciados realizados em tempos e locais diversos, fazendo interagir no texto atores que não necessariamente se encontraram fisicamente. Nossa contribuição para a fabricação do mundo, ficção, no seu sentido pleno.
Jean Rouch, um antropólogo-cineasta francês, que trabalhou por seis décadas no continente africano, realizando filmes com seus amigos a partir de histórias que eles quiseram contar, dizia que a ficção era por vezes a melhor maneira de penetrar a realidade. O cinema era, para Rouch, a única forma possível de compartilhar a antropologia, de produzir conhecimento com as populações que pesquisava, de apresentar aos seus interlocutores os resultados de sua pesquisa.
Partindo desse projeto rouchiano, o que vislumbrar para a antropologia a partir da multiplicação das novas possibilidades de produção e compartilhamento de informações nos dias de hoje, com as tecnologias digitais em constante desenvolvimento? Momento em que “compartilhar” torna-se categoria nativa no mundo virtual, verbo tão popular quanto “curtir” em tempos de Facebook. As redes e plataformas virtuais e os instrumentos mais acessíveis de captação de imagem e som são peças-chave nas transformações que se processam no mundo hoje e no trabalho audiovisual antropológico.
A cartovideografia (Mapa das Artes da Cidade Tiradentes), os filmes etnográficos e este livro são experiências de troca de informação e de produção de olhares sobre a vida nas periferias em coautoria com seus artistas-moradores.
Neste projeto coletivo, a etnografia audiovisual pode ser pensada também como forma de contribuição para uma participação mais efetiva dos artistas e moradores dos distritos periféricos nos processos de reflexão e decisão sobre o destino de nossa cidade.
A apropriação do Mapa das Artes da Cidade Tiradentes, dos filmes etnográficos e deste livro pelos artistas é parte do projeto de Antropologia Compartilhada que fundamenta nossas pesquisas. Esperamos que os materiais que criamos juntos ecoem nos processos de comunicação de dentro para fora (e de fora pra dentro) “do gueto”. Que colaborem para a defesa e para o fortalecimento de uma arte pública, integrada com seu território, e que sirvam como peças estratégicas nas disputas que envolvem a produção e o consumo da arte na cidade.
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