No universo poético-simbólico de Guimarães Rosa, o boi ou touro tem assento privilegiado. A obra do escritor é atravessada pelos berros e urros do gado, seu comportamento e existência, sua estranha sabedoria imemorial. O boi de Rosa vem de longe. Oriundo do substrato religioso das mais antigas civilizações - Assíria, Babilônia, Egito, Índia - o boi aporta ao sertão rosiano munido de sua milenar herança mítica e sagrada. Igualmente, o vaqueiro que se lhe devota é muito mais do que o homem no pastoreio. Ele é o bukólos ou bubulcus, descendente dos pastores primigênios da Creta egeia, que é investido da função sacerdotal e dotado de vocação poética. O presente ensaio movimenta estas questões por meio da interpretação de duas estórias de Tutaméia, último livro do escritor: “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi” e “Hiato”.
Em “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, conto curto – como todos de Tutaméia – João Guimarães Rosa, além de se ater ao folclórico e decantado tema do boi, discute a relação entre o homem e o tempo, ante cuja inexorabilidade resta, apenas, criar através da linguagem, um universo imaginário – assim como a literatura – capaz de converter-se em alento para seu criador.
Examinam-se três contos de Tutaméia (Terceiras estórias), de João Guimarães Rosa: “João Porém, o criador de perus”, “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi” e “Tapiiraiauara”, respectivamente, a décima sexta, vigésima quinta e trigésima quinta narrativas. Observa-se o aproveitamento que o autor realiza de elementos procedentes de uma cultura falada, como também a transmissão e reinvenção de uma literatura popular, seu desempenho oral, suas situações de enunciação e de divulgação; assim, busca-se compreender o modo pelo qual o escritor confere credibilidade e verossimilhança ao que é ensinado através das manifestações orais.
Nosso trabalho de crítica literária se ocupa do estudo analítico da imagem do boi como construção de uma narrativa oral no Sertão. Elegemos como corpus a canção Cantiga de Boi Encantado, de Elomar Figueira Mello e o conto Os Três Homens e o Boi dos Três Homens que Inventaram um Boi, de Guimarães Rosa; que serão observados pelo viés do imaginário, da identidade e da memória do cantar/contar as representações de um boi encantado pela cultura do nordeste.