Neste artigo serão postas em diálogo as áreas literária e filosófica a partir do conto de Guimarães Rosa, O espelho e o pensamento do filósofo Martin Heidegger, mais precisamente no que tange às questões relativas à revelação e transformação do homem. No referido conto, apresentam-se pontos que coadunam com a vertente proposta por Heidegger, a saber, de que os conceitos não conseguem dar conta não apenas das questões, mas também da visão do homem sobre si mesmo, permeada de ilusórias perspectivas. Objetiva-se demonstrar que o homem afastou-se das questões que o cercam e permeiam o mundo, na tentativa de suprimir o incômodo gerado pela indefinição de si.
O conto O espelho, de Guimarães Rosa, narra a história de um homem que, através de sua imagem refletida no espelho, inicia um processo de reconhecimento de si, uma vez que tal reflexo não consegue expressar quem ele é de fato, mas somente apresentar uma imagem que em nada o representa em sua essência. Pode-se depreender, em tal obra, três transformações, a saber: a primeira, na qual o indivíduo se confronta inicialmente com sua imagem refletida no espelho, a qual o perturba. Esse é o que se pode chamar de ponto de partida para todo o processo de reconhecimento de si. A segunda aponta para uma suspensão da visão que o indivíduo tem de si, incluindo fatores genéticos e estéticos. A terceira transformação compreende o início efetivo do nascimento do “eu” do narrador, metaforizado através da imagem da criança. Pretende-se estabelecer uma relação interpretativa entre o referido conto com a filosofia de Friedrich Nietzsche, cuja obra Assim falava Zaratustra, apresenta transformações similares através da figura do camelo, do leão e, por fim, da criança. Buscar-se-á explicitar, dessa forma, relacionando o conto de Guimarães Rosa com a filosofia de Nietzsche, o processo efetivado pelo indivíduo para questionar ideologias estabelecidas, que lhe são impostas no decorrer da vida e ele deve carregá-las, como o camelo, mas que, diante de um processo questionador, possa desfazer tais concepções, destroçando-as, tal qual o leão, para, enfim, descobrir quem de fato é através de um novo “eu”, como a criança, que tudo questiona.