Este artigo analisa aspectos da personagem de ficção em duas narrativas canônicas de língua portuguesa: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Que farei quando tudo arde?, do escritor português António Lobo Antunes. O objetivo é, através de uma leitura que parte da proposta crítica de Silviano Santiago (“wilderness” ou “qualidade selvagem” do texto literário) e das proposições teóricas de Jacques Derrida (“semântica do indecidível”), demonstrar como a construção ficcional dessas personagens de sexualidades dissidentes impulsiona a própria diegese, conformando as textualidades também dissidentes dessas duas obras. A análise empreendida indica que o processo de metamorfose identitária experienciado por essas duas “personagensmônada” e revelado ao final de suas respectivas narrativas obriga o leitor a um constante reposicionamento interpretativo, evidenciando que essas personagens textualizam o famoso axioma “character is plot, plot is character”.
Se a crítica de Grande sertão: veredas tem avançado no comentário sobre a qualidade sensual da amizade entre o protagonista-narrador Riobaldo e o jagunço Diadorim, há ainda um percurso a pavimentar em relação às companheiras prostitutas Maria-da-Luz e Hortência/Ageala. O presente trabalho consiste em contrastar os pares Riobaldo/Diadorim e Maria-da-Luz/Ageala enquanto distintas ordens homoafetivas e resgatar a existência lésbica de sua condição periférica no Grande sertão. Para tanto, tem por baliza teórica as formulações de Eve K. Sedgwick, em Between men (1985), e de Terry Castle, em The apparitional lesbian (2003), entre outros. Analisa, também, a condição travestida de Diadorim, que lhe permite criar uma terceira margem em termos de gênero.