O presente artigo traz em seu bojo o papel inusitado que Guimarães Rosa confere aos prefácios quando da construção e estruturação da obra Tutameia. Discute-se como a(s) temática(s) e estruturação da referida obra já se revelam pela organicidade dos prefácios: os motivos já se delineiam em quatro narrativas que funcionam, a um só tempo, como prefácios e como histórias que complementam o repertório dos quarenta contos que compõem a obra. Vislumbra-se, desse modo, como tais prefácios conseguem amalgamar reflexões, pistas de leitura e escrita, metalinguagem, histórias e estórias, conservando, simultaneamente, a integridade (dos prefácios e demais narrativas) e a garantida dos elementos constitutivos do todo de obra que é Tutameia. Jogo performativo esse com que o prosador nos dá uma amostra de obra que não só questiona o próprio fazer literário, como também reflete e nos apresenta amostra(s) de vida, que – assim como a obra – apresenta seus inesgotáveis motivos que merecem (e devem) ser lidos.
A verificação da constituição do livro como objeto requer estudos sobre a história da composição do livro como tal. Até estruturar-se da maneira como o conhecemos o livro passa por diversas etapas em sua dimenão material, dentre elas: os paratextos, a parte pré textual, organizacional de uma publicação. Conhecer os detalhes dessa estrutura editorial contribui para a organização e a leitura de uma obra. No entanto, há autores que usam da transgressão da norma para buscar o espírito artístico. Os prefácios da obra Tutameia de João Guimarães Rosa suscitam a questão essencial deste trabalho: a transgressão do autor os torna os prefácios da obra textos ou paratextos? A trajetória para a efetiva publicação da obra mostra o quão criterioso o autor foi na sua revisão editorial e quão importante é para o leitor entender esse processo.
Neste artigo, faz-se uma abordagem dos contos "João Porém, criador de perus", "Grande Gedeão" e "Reminisção", incluídos na segunda seção de Tutameia, de Guimarães Rosa. Enfeixados por um prefácio comum (intitulado "Hipotrélico"), que de algum modo os caracteriza, verifica-se entre eles certo número de simetrias de construção que, somado à presença de um senso de humor ora sutil, ora declarado, sugere práticas de linguagem do autor que se repetem também noutros livros. Nesses contos, a fábula, confundida com a anedota, é o elemento que desloca a possibilidade do “falar a sério”, em que a narrativa ameaça enredar-se, para as celebrações do imaginário, no qual se opõem a estória e a história, numa trama de insinuações, contradições e paradoxos que permite apontar para aquilo que o autor denomina de suprassenso. Ali, a linguagem assume a tarefa de operar com os planos do sentido e do não sentido, aproximando-os ou distanciando-os, de modo a tocar aquilo que o dizer, em sua dimensão de senso (e senso comum), proíbe, posterga ou escamoteia.
Recatado e introvertido, avesso a expor-se publicamente, raras foram as vezes em que Guimarães Rosa concedeu entrevistas ou falou sobre sua vida e obra, como por exemplo nas famosas entrevistas que lhe fizeram Günter Lorenz e Fernando Camacho, ou nos depoimentos resultantes de conversas fortuitas que com ele tiveram Renard Perez e Emir Rodríguez Monegal. No entanto, em seu último livro publicado em vida – Tutameia – o autor, dividindo-o em quatro partes, fez preceder cada uma delas de um prefácio que, juntos, têm sido frquentemente considerados pela crítica como uma espécie de ars poetica, em que apresenta e discute alguns dos aspectos mais relevantes de sua concepção estética: a oposição entre “estória” e “história” e a noção de coerência interna da obra de arte, a criação de neologismos, a relação entre a obra e o mundo do autor, e os problemas da criação estética. Este livro, cujo título significa, de acordo com o próprio Rosa, “nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea omnia”, é uma coleção de contos bastante curtos (a maioria deles de três a quatro páginas), que constituem talvez a sua maior realização em termos de depuração do estilo. Com o intuito de explorar um pouco mais “esse mar de territórios”, na expressão do próprio autor, contido nos prefácios, optamos por revisitá-los neste texto, detendo-nos separadamente em cada um deles.
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