Este artigo analisa o conto “Retrato de cavalo” constante em Tutaméia – terceiras estórias (1967) do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Abordaremos a relação das personagens com a realidade e com a representação dentro da narrativa, focalizando a fotografia do cavalo e os sentidos que a ela se agregam. Procuraremos mostrar como em algumas passagens os signos de luz e sombra ligam-se à representação, a qual desestabiliza ao máximo os objetos representados e demais personagens. Para tanto, dialogaremos com Platão, Merleau-Ponty, Blanchot e Barthes sempre que julgarmos necessária essa interlocução.
Um delito foi cometido: Iô Williãozinho ousou bater uma foto
do alvinitoso de Bio, sem aviso nem consentimento. Em “Retrato de cavalo”, de Tutaméia, a instigante indeterminação da escritura de Guimarães Rosa estabelece um paralelo entre
um cavalo e seu retrato, a partir dos sentimentos contraditórios de seu dono, que considera um crime aquele clique. Temos aí um retrato, imagem subtraída ilicitamente ao seu dono: escrita, representação. Temos também uma narrativa, escrita do retrato, representação da representação. Este artigo pretende mostrar como Guimarães Rosa manipula as ambiguidades da linguagem literária, levando-a além dos limites da representação, explorando seu fascínio, seu saber, que não é da ordem da compreensão. O cavalo e seu retrato fazem refletir sobre a literatura, sobre seu excesso de verdade que compõe sua mentira. Ao escrever o cavalo e seu retrato, o texto não consegue fixar nenhuma verdade, apenas imagens fugidias que compõem recapítulos: há sempre um escrito a se sobrepor a outro, sem determinar onde está o verdadeiro, onde está o que o nega, a remeter o olhar ao reino da fascinação, onde a imagem perde o valor de significação para se tornar pura paixão da indeterminação, da indiferença.
Centro de Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Letras.
Tutaméia (Terceiras Estórias), de João Guimarães Rosa, é uma obra que desestrutura o leitor. Os elementos que a tornam labiríntica são múltiplos: dois índices, dois títulos, ordenação alfabética dos contos, anagramas, epígrafes, glossário, quatro prefácios, ilustrações de capa e ilustrações ao final de cada estória. A tese que se propõe defender nesta pesquisa dá conta de decifrar parte de um de seus enigmas. Curiosamente, o livro possui quatro prefácios distribuídos de entremeio aos contos. A nosso ver, desempenhando função específica planejada pelo ficcionista, tais textos estariam a serviço de “prefaciar” os correspondentes contos que antecipam. Através da análise dos onze contos que seguem o terceiro prefácio, “Nós, os temulentos”, o presente estudo objetiva evidenciar esta intenção do escritor. Em “Nós, os temulentos”, Guimarães Rosa explora, pela via do humor, a visão “diplópica” de “Chico, o herói”, propiciada pela embriaguez. Por meio da imagem deste temulento e de seus dualismos, o autor parece oferecer a chave temática do grupo de estórias que segue o referido prefácio. Acreditamos que a grande constante ou a coluna dorsal de tais contos é o tema do duplo. O primeiro passo a ser dado para provar esta tese inicia já na introdução do trabalho. Nesta parte, são detalhados os pormenores da peculiar estrutura de Tutaméia (Terceiras Estórias) e tecidas algumas considerações acerca dos quatro prefácios que a compõem. Em seguida, conforme antecipa o título do primeiro capítulo, é realizado “um périplo pelo território do duplo”, assunto de abrangência bastante considerável. Por último, são realizadas as análises dos contos “O outro ou o outro”, “Orientação”, “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”, “Palhaço da boca verde”, “Presepe”, “Quadrinho de estória”, “Rebimba, o bom”, “Retrato de cavalo”, “Ripuária”, “Se eu seria personagem” e “Sinhá secada”.
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